segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Pessoas e coisas

Antes de qualquer coisa, desculpem a demora em postar novamente. Ao começarmos o blog, esquecemos da correria de final de semestre nas disciplinas, cursos e trabalhos finais. Embora tenhamos um número ainda pequeno de seguidores, o número de visualizações foi surpreendemente alto (embora tenha receio de que devido ao tamanho exagerado dos nossos posts, nem todos se deem ao trabalho de ler). Todavia as aulas estão acabando e logo retornaremos a Cruz Alta com mais tempo para nossas pesquisas e para o blog.

Mas vamos ao que interessa.

Sendo bastante simplista, posso dizer que arqueólogos estudam coisas. Estas coisas, no entanto, são produto de ação humana. Arqueólogos, portanto, estudam pessoas a partir das coisas que elas produziram e utilizaram. Mas na arqueologia, como em outras ciências, diferentes formas de pensar influenciam o pesquisador e geram diferentes formas de fazer arqueologia. Assim, existem diferentes formas de pensar como pessoas e coisas se relacionam, dependendo das teorias as quais cada um se identifica e se vincula. Em uma destas teorias, se reconhece que pessoas e coisas se fazem mutuamente. E sobre isso é o post de hoje.

Pessoas fazem coisas; isso é fato. Mas e as coisas, fazem pessoas?

Para o antropólogo britânico Daniel Miller (entre outros), sim. Segundo ele, muito do que somos está não dentro de nós, em uma substância ou essência interna; mas fora de nós, nos lugares que frequentamos e nos objetos que utilizamos. Todos aprendemos nas aulas de português que uma frase é composta de um sujeito e um predicado. O sujeito determina de onde parte a ação, e o predicado é tudo aquilo que se diz ou que se declara sobre o sujeito. No predicado há o objeto, que indica aquilo que sofre a ação. Filosoficamente, somos pensados quase sempre nesta mesma lógica: somos sujeitos, agimos. As coisas são objetos, e apenas sofrem a ação; são passivos. Esta visão, contudo, tem sido questionada...

Em um de seus últimos livros publicados no Brasil, o filósofo esloveno Slavoj Žižek fala sobre o que ele chama objeto incômodo, invertendo a lógica a partir dos verbos derivados sujeitar e objetar. Sujeitar é submeter-se, estar sujeito a algo ou alguém. Objetar é criar uma objeção, um obstáculo. Assim, para este filósofo, bem como para o antropólogo Daniel Miller, a materialidade que nos cerca cria obstáculos, e estamos em certa medida sujeitos a ela. A materialidade de uma cidade como Cruz Alta dirige nossos movimentos, os habilita e os constrange. O traçado das ruas, fruto de planejamento e intenção humanas, dirige os movimentos dos habitantes da cidade. Os obriga a caminhar por aqui, e não por ali. Os objetos também têm esse poder. O machado não é apenas a ferramenta com a qual corto uma árvore. Ele é absolutamente fundamental. É ele que me dá a capacidade de cortar a árvore. Ele age, portanto, como um meio de manifestar minha intencionalidade, me habilita a um tipo específico de engajamento com o meio ao meu redor (neste caso, cortar a árvore) que não seria possível sem o machado.

Arqueólogos chamam as coisas que estudam de cultura material. Para Daniel Miller, o termo é útil exatamente porque reconhece que as coisas que nos rodeiam são também parte de quem nós somos. Muitas vezes tendemos a pensar no "eu" como uma essência interna, constante, que de dentro de mim garante que eu sou, e sempre serei eu. Contudo, identidade é algo que se assume, uma construção sempre presente e dependente do contexto em que estamos. É comum ver pessoas que passam a tomar chimarrão e escutar música gaúcha com muito mais frequencia quando vão morar em outro estado, exacerbando seu "gauchismo" em uma tentativa de demonstrar sua identidade em relação ao outro (me ocorre agora que a cuia é um ótimo exemplo... quando trabalhei por um período no Ceará, ao me ver com a cuia na mão todos perguntavam: "você é gaúcho, né?"). Mas a materialidade tem papel importante na nossa identidade em diversos sentidos...

Quando nascemos, somos criados dentro de um pequeno ambiente social, a família. Neste ambiente, observamos o que acontece a nossa volta, aprendemos como andar, como falar... aprendemos também qual a hora de almoçar e a hora de dormir, a roupa para ir a escola e a roupa para ir à missa. O que a materialidade tem a ver com isso? É aqui também que aprendemos como os espaços de uma casa devem ser divididos: que tipos de móveis vão na cozinha e que tipos vão no quarto... Aprendemos que o rosa é cor de meninas e o azul é cor de meninos.Quando crescemos, reproduzimos muitas destas coisas, exatamente porque nos parecem naturais, pois as coisas já eram assim quando nascemos. No entanto estas formas de pensar são construídas historicamente. Quando nascemos, apenas "pegamos o bonde andando." É a partir deste mecanismo que a cultura se reproduz. Uma de minhas sobrinhas, antes de começar a falar (português), já põe telefones celulares na orelha e fala por horas (em uma língua que provavelmente só ela e o interlocutor entendam). Crescendo em um meio onde observa as pessoas ao seu redor falando com aquele objeto apoiado no rosto, ela reproduz a prática e aprende uma maneira específica de se relacionar com essa coisa. Mesmo sem saber falar, ela já sabe o que fazer com o telefone. Afinal, é o que todos ao seu redor fazem: apóiam o aparelho na orelha, e falam.

Embora esteja morando em Pelotas, me identifico como cruzaltense. Mas ser um cidadão de Cruz Alta implica, entre outras coisas, que eu reconheça as ruas da cidade, que eu vivencie suas esquinas, que eu saiba o nome das ruas, enfim... é preciso que eu conheça e experiencie a cidade em seus aspectos materiais. Se sou estudante, uma série de outros objetos vai garantir com que os outros me reconheçam enquanto estudante: mochilas, canetas, cadernos, livros. Os objetos que utilizamos são também parte do que somos. Uma forma de entender isso é imaginar a seguinte situação: entro no quarto de uma pessoa que eu não conheço, e este quarto está cheio de objetos desta pessoa. Prestando atenção nestes objetos, posso conhecer um pouco mais de quem os usa. Roupas sujas espalhadas pelo quarto sugerem que ele não é muito organizado; livros de Dostoiévski, Erico Verissimo e Gabriel Garcia Márquez indicam que gosta de literatura; um cinzeiro cheio me leva a pensar que trata-se de um fumante... Toda prática envolve diferentes formas de engajar-se com a materialidade, seja frequentando um espaço específico ou utilizando diferentes ferramentas. Para ser um pedreiro, preciso estar em construções e dominar o uso das ferramentas e dos materiais de construção. Se sou enfermeiro, roupa branca e um estetoscópio são elementos característicos.

E se fizéssemos esse mesmo tipo de leitura sobre objetos do passado? Instrumentos pré-históricos feitos em pedra lascada, como os já encontrados na área próxima ao campus da Unicruz e nas proximidades do presídio; ou fragmentos de louça e vidro do século 19, como encontramos no terreno hoje ocupado pela sede do Sicredi... Estudar objetos como estes (e muitos outros que podem estar logo abaixo de nossos pés) nos permitiria entender diferentes formas de viver, de engajar-se com a paisagem, de produzir e utilizar objetos... Cruz Alta tem potencial para isso.

Em resumo, o que nos define não é uma essência interna que determina nossos atos. Somos aquilo que fazemos, e baseado naquilo que fazemos os outros também nos definem. Esse fazer envolve, sempre, a materialidade. Disso se conclui que a identidade não é fixa e imutável. Estamos em constante movimento e em constante mudança e, exatamente por isso, os objetos do passado são reivindicados como âncoras para dar coerência a estas identidades sempre problemáticas. Essa é a principal função atribuída ao patrimônio. Mas isso é assunto para outro post...

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Arqueologia no Arroio Cambará

     Estaríamos trabalhando durante essa semana em uma campanha de escavação no Arroio Cambará, próximo ao campus universitário em Cruz Alta. Estávamos nos planejando para sair de Pelotas no dia 12/11. Tudo organizado; materiais de campo, planejamento financeiro, equipe, etc. Já contávamos com a portaria do IPHAN autorizando a pesquisa, e dias atrás recebemos por e-mail a resposta da reitoria da Universidade nos autorizando a entrar na área.
     Porém, na véspera da viagem, recebemos a notícia de que o local onde estão os sítios arqueológicos é uma área de proteção ambiental, caracterizada como tal a partir das atividades do Centro de Estudo, Pesquisa e Preservação Ambiental – Unicruz. Contatados pela reitoria da Universidade, fomos informados de que O CEPPA possui um regulamento no qual diz que não é possível realizar intervenções geológicas na área. Desse modo, precisaríamos enviar um projeto ao curso de Biologia, que autorizaria ou não nossa pesquisa. Além disso, nos foi solicitado mais um documento que não havia sido solicitado antes, confirmando-nos enquanto alunos (e, no caso do coordenador da pesquisa, professor) da Universidade Federal de Pelotas e vinculando a pesquisa a um projeto de dissertação de mestrado. Tudo isso na tarde de sexta, quando preparávamos a viagem para a manhã seguinte.
     O resultado final é que... Ficamos em Pelotas. Não tivemos tempo hábil para reunir os novos documentos e iniciar as pesquisas na data prevista. Como tudo aconteceu na sexta-feira, e considerando que a segunda foi feriado, teríamos que aguardar até a terça para entrar em contato novamente com a Universidade. Agora, nos resta resolver essa questão para que a pesquisa arqueológica no Arroio Cambará possa ser desenvolvida o quanto antes.
     Antes do adiamento, preparamos um post para falar um pouco do que seria feito nesta semana. Segue abaixo:

     Durante essa semana estaremos realizando trabalhos de campo nos sítios arqueológicos próximos ao campus universitário – Unicruz. Essa campanha faz parte de um de nossos projetos, sobre a ocupação de grupos pré-históricos na região de Cruz Alta. Esses locais foram identificados a partir das atividades do Núcleo de Arqueologia (Narq – Unicruz) e são os primeiros sítios arqueológicos pré-coloniais encontrados e estudados em Cruz Alta. Antes disso, nenhum sítio arqueológico havia sido encontrado e registrado no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN.
     Iremos abrir pequenas sondagens estratigráficas a fim de identificar possíveis áreas com estruturas de ocupações pré-coloniais, já que até o momento somente coletas de superfície foram realizadas. Nosso objetivo é verificar, nos 4 sítios evidenciados, qual deles apresenta um maior potencial para uma maior intervenção arqueológica baseada em abertura de sondagens maiores, ou seja, um estudo intra-sítio de alguma ocupação pré-colonial.
     O que já sabemos até então, é que são grupos de caçadores-coletores, ou seja, grupos culturais que tinham um modo de vida baseado na caça e coleta de alimentos. Muitos deles eram nômades e vagavam por regiões onde pudessem obter recursos para sua subsistência. Como até agora poucos materiais foram encontrados, temos poucas informações sobre o modo de vida desses grupos. Encontramos muitas lascas de calcedônia, arenito silicificado, basalto, etc., materiais esses ainda não analisados. Além disso, dois artefatos: uma pedra de arremesso polida (material possivelmente utilizado nas atividades de caça) e um “quebra-coquinho”, material comumente associado à ação de quebrar coquinhos, mas que atualmente tem sido vinculado à fabricação de instrumentos em pedra (possivelmente utilizado como uma bigorna).
     É difícil dizer seguramente que grupos eram esses; por viverem em um período no qual não existem registros escritos, o que temos é a sua cultura material como fonte de pesquisa. Essa cultura material, no caso dos sítios do Arroio Cambará, é composta por materiais em pedra lascada e polida; materiais esses utilizados no dia-a-dia desses povos. Com certeza utilizavam outros tipos de matéria-prima, porém, os materiais em pedra são freqüentemente encontrados em função de sua resistência ao tempo.

Exemplo de materiais em pedra lascada e polida utilizados por grupos pré-coloniais (extraído de http://www.brasilescola.com/geografia/desvendando-arqueologia-vi.htm)

     Além de escavar os sítios, pretendemos filmar essa intervenção, a fim de mostrar um pouco como é uma escavação arqueológica. Isso faz parte do nosso objetivo, no que diz respeito à criação do blog, que é mostrar o quão rico é o potencial arqueológico do município.
     Conhecer a história de Cruz Alta deveria não ser só importante para quem estuda História, Arqueologia, etc. Cruz Alta é recheada de lendas e textos que atestam a presença de variados grupos culturais na região. Isso diz respeito às origens do município e também à identidade da sociedade cruzaltense. No caso dos grupos indígenas, estes estavam vivendo ali há muito tempo, e a Arqueologia pode criar novas interpretações e conhecer um pouco da história desses pioneiros.

Por uma Cruz Alta arqueológica


A ideia de produzir um blog para discutir nossas ideias com outras pessoas já tem algum tempo, mas por um motivo ou outro, foi sendo adiada. Dias atrás, contudo, conhecemos um blog que se propõe a falar da mesma cidade que nós, Cruz Alta. Em um post recente, o blog Cruzaltino externou sua preocupação com o patrimônio arquitetônico da cidade, destacando a iminente demolição da casa na esquina das ruas Venâncio Aires e Domingos Veríssimo. Mais um edifício histórico a caminho de se tornar apenas uma imagem, nas fotografias e nas lembranças daqueles que tiveram a oportunidade de vê-lo.
Involuntariamente, este post foi o estopim, um debate aberto, que nos fez querer entrar na conversa, falando sobre o que estamos desenvolvendo. Compartilhamos a preocupação em relação ao patrimônio cultural do município. Destruir uma casa do início do século vinte é destruir este pequeno fragmento do passado, esta evidência real, concreta, de um momento que nunca mais se repetirá. Contudo, estamos trabalhando para entender um pouco mais sobre outras maneiras de pensar o patrimônio. Demoramos a perceber que esta coisa toda do patrimônio não é apenas sobre preservar antiguidades, mas sobre criar histórias, memórias, identidades. Sendo um campo de atuação política, cabe ao poder público municipal atuar no sentido de patrimonializar, preservar bens que se supõem importantes para a história local. É a partir disso que uma cidade tenta contar sua história.
O valor destas casas não reside apenas por sua antiguidade ou por seu valor arquitetônico. Estas casas também podem ser objeto de estudo de antropólogos, arqueólogos, historiadores, etc. A organização espacial das casas, a distribuição dos cômodos, são produtos de sociedades específicas, de formas de habitar e de relações familiares e sociais produzidas em momentos históricos particulares. Diferentes olhares para uma casa geram diferentes interpretações, outras histórias.
Além disso, a cidade não é apenas um conjunto de prédios; é uma intrincada rede de relações. Criar espaços (prédios, ruas, praças) é criar relações sociais. Falando especificamente de Cruz Alta, é só mencionar os pareceres do IPHAE – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado, quanto ao tombamento da Prefeitura Municipal e do Museu Erico Verissimo, facilmente encontrados no Plano Diretor, disponível no site da cidade. Uma das recomendações é a preservação de outros prédios históricos no entorno, de modo a preservar a harmonia da paisagem urbana. Os órgãos patrimoniais reconhecem a necessidade de entender a paisagem urbana de uma maneira mais holística.
Mas há ainda outra questão, que realmente gostaríamos de discutir. Existem outras “categorias” de patrimônio, segundo as cartas patrimoniais da UNESCO, a Constituição Federal e, também, o Plano Diretor do município. Entre outras categorias listadas no Plano Diretor, estão os sítios de valor arqueológico. É sobre isso que estamos tentando debater.
Durante nossos estudos de graduação em História aprendemos um pouco de arqueologia. Trabalhamos como arqueólogos por algum tempo e atualmente desenvolvemos nossas pesquisas de mestrado. Embora tenhamos interesses diversos e pesquisas distintas, ambos trabalhamos para demonstrar que Cruz Alta é uma cidade arqueológica.
Uma de nossas pesquisas diz respeito a alguns sítios pré-coloniais identificados nas proximidades do campus da Unicruz. Essa pesquisa poderá mostrar um pouco do modo de vida dos prováveis primeiros habitantes da região; grupos de caçadores-coletores que podem ter ocupado esse espaço em períodos muito antigos, talvez até alguns milênios atrás. Instrumentos de pedra lascada encontrados nesta área – e em uma área próxima do presídio do município – demonstram a presença destes habitantes pré-históricos na região.
Essa comprovação é importante para uma melhor compreensão a respeito das sociedades indígenas que estiveram na região de Cruz Alta em períodos históricos. Existem relatos etnográficos sobre grupos Kaingangs e Guaranis vivendo no território onde hoje é Cruz Alta. Ainda hoje vemos índios Kaingangs na cidade. Algumas lendas do município falam um pouco dessa presença, bem como alguns lugares a fazem lembrar (a taba índia, por exemplo; estádio do E. C. Guarany).
A outra pesquisa procura levantar o potencial arqueológico do centro da cidade. Afinal, a cidade começou a tomar forma a partir de 1821 onde hoje temos a Praça da Matriz, estendendo-se pela rua hoje chamada Pinheiro Machado, e as ocupações e reocupações do espaço urbano certamente deixaram uma série de vestígios arqueológicos passíveis de estudo e interpretação. Antes de haver coleta de lixo, era prática comum que o lixo fosse descartado em fossas ou simplesmente jogado no fundo dos pátios. Além dos restos alimentares, objetos e utensílios de uso cotidiano eram frequentemente jogados nestas lixeiras. Estudados por arqueólogos, estes objetos podem contar um pouco mais sobre o cotidiano e a vida dos habitantes de Cruz Alta ao longo do século dezenove e vinte. A constante transformação urbana não causa apenas danos ao patrimônio arquitetônico. Está causando danos irreparáveis também aos contextos arqueológicos no subsolo, destruindo importantes fontes materiais para estudo do comportamento humano.
Entre os anos de 2004 e 2008 funcionou na Unicruz o Núcleo de Arqueologia, vinculado ao curso de História, que infelizmente está desativado. Na época, além de identificar os sítios pré-históricos já mencionados, tivemos uma pequena oportunidade de atestar o potencial arqueológico da área urbana de Cruz Alta, no terreno onde hoje está localizada a sede do Sicredi. Na época, quando a construção se iniciava, o então secretário de cultura e nosso colega de faculdade Rossano Cavalari, passou pelo local e viu uma grande quantidade de vestígios arqueológicos no terreno. Corremos ao local e conseguimos fazer uma coleta emergencial do material que sobrou, além de uma pequena escavação em uma área ainda preservada. Com exceção desta pequena área, o contexto arqueológico foi completamente destruído.
Esta é uma de nossas preocupações. Pensamos que se a cidade se reconhecesse enquanto uma cidade arqueológica, e trabalhássemos neste sentido, mecanismos legais poderiam garantir que em casos semelhantes, estudos arqueológicos possam ser feitos antes de novas construções. Na impossibilidade de preservar o sítio, ao menos garantir que este seja escavado e estudado, produzindo conhecimento e gerando novos dados para o entendimento da história dos cruzaltenses e daqueles que já viviam nestas terras antes de qualquer tropeiro ou estancieiro.
Como muitos, conhecemos as histórias de Cruz Alta que estão nos livros, e aguardamos ansiosamente por novas pesquisas. Mas a história não está apenas nos livros; está nas casas, nas ruas, nos objetos. Nossos museus contam uma história a partir de objetos. Contudo, há ainda muitos objetos utilizados no passado, acessíveis ao estudo, desde que haja interesse. Estes objetos muitas vezes estão sob nossos pés, sem que nos demos conta. A arqueologia pode ajudar a evidenciar novos detalhes, novas compreensões dos modos de vida e das transformações sociais e culturais que aconteceram na cidade e na região. Ela pode contar um pouco mais sobre quem foram estes índios repelidos pelos tropeiros. Nos documentos históricos, eles são bugres; mas tendemos a pensar que eles foram mais do que isso. Eram pessoas, com seus modos de vida e suas visões de mundo particulares.
A arqueologia também pode mostrar como a vida material dos primeiros habitantes da Mui Leal Vila do Espírito Santo da Cruz Alta se relacionou com os discursos modernizadores, a expansão da industrialização e do capitalismo de mercado durante o século dezenove. Pesquisas em diferentes pontos da cidade poderiam gerar dados sobre as diferenças da cultura material de ricos e pobres, senhores e escravos, contar um pouco sobre os cotidianos domésticos, espaço eminentemente feminino durante boa parte da história da cidade.
Os vestígios materiais podem gerar o entendimento de aspectos de nossa história que não são encontrados nos documentos escritos. Da mesma forma, com a arqueologia podemos alcançar aqueles que também não tiveram a oportunidade de escrever seus próprios documentos. Seria uma forma de ampliar nossa história, trazer à tona as pessoas comuns. Cruz Alta não é apenas a terra de Erico Verissimo, do Cel. Firmino de Paula ou de Pinheiro Machado. É a terra de milhares de homens e mulheres das mais diversas origens étnicas e culturais, que viveram e vivem suas vidas sem nem perceber que a cada segundo, criam e transformam paisagens, lugares, objetos… histórias.
 As ideias aqui propostas são produto de nossa formação e de nossos interesses pessoais e acadêmicos. Não estamos vinculados a qualquer partido ou instituição; mas apenas à nossa preocupação com o desconhecimento e a destruição dos bens arqueológicos, o que não é um problema apenas em Cruz Alta. Trouxemos para um contexto conhecido um debate que é efetivamente global. Vivemos uma época de um dito desenvolvimento econômico e científico que levou a uma passagem cada vez mais rápida do tempo (celulares e computadores tornam-se obsoletos em questão de meses, tradições culturais transformam-se radicalmente de uma geração para a outra) e de um futuro sempre incerto. Neste contexto, a proliferação de patrimônios parece demonstrar a necessidade de uma âncora segura, que dê coesão a nossas histórias, a nossas identidades. E assim se constitui o patrimônio.
 De acordo com a lei, o patrimônio é um bem público. O blog é, portanto, a forma que encontramos de tornar públicas as nossas ideias, para que estas possam ser debatidas com outros – cruzaltenses ou não – que de uma forma ou outra estejam interessados no que temos a dizer. Estamos em uma fase ainda inicial de nossas pesquisas e temos por pretensão levar nossos resultados ao poder público municipal, na tentativa de que possamos reconhecer Cruz Alta como uma cidade arqueológica.
É o que esperamos.
Fernando Silva de Almeida – fernando_almeida@ymail.com
Jonathan Santos Caino – jon.caino@gmail.com