quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Parabéns Cruz Alta

Em junho de 1821 um grupo de moradores de um pequeno povoado emitiu um documento solicitando autorização para a construção de uma capela, necessária para a administração dos sacramentos. Em 18 de agosto do mesmo ano, exatos 190 anos atrás, o Comandante de Armas da Fronteira emitiu outro documento, autorizando a construção da capela e estabelecendo as regras para o traçado urbano da vila, o que viria a acontecer somente em 1825. Isso porque havia por aqui a "incômoda presença dos bugres", que hostilizaram nossos bravos primeiros povoadores. (Curiosa inversão de valores essa, onde aqueles que viviam nessas terras há séculos são os hostis. Mas foi assim que nos contaram, sigamos a corrente). Desde então os "selvagens hostis" foram rechaçados e a cidade cresceu; escravos foram castigados - alguns enforcados - na atual praça da matriz, lavradores e posseiros pobres foram expropriados e expulsos de suas terras quando a lei de terras permitiu que os grandes estancieiros - detentores da grana - comprassem e legitimassem a posse de áreas que nem sempre eram de fato suas, e trabalhadores pobres da Capoeira e do Barro Preto foram tratados como vagabundos, bêbados, criminosos, por seus contemporâneos republicanos que deixaram suas marcas na belíssima arquitetura histórica de nossa cidade.

190 anos de uma linda história.

Comemoremos os feitos dos heroicos tropeiros que fundaram nossa vila, lembremos de João José de Barros, Vidal do Pilar, Pinheiro Machado, Firmino de Paula...

E que haja muita festa na praça do degolador, afinal não podemos esquecer do nosso passado, certo?

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Para saber um pouco mais da história de Cruz Alta

Hoje, um post de divulgação. Nosso amigo Fabrício Renner de Moura - autor do excelente texto publicado aqui sobre o cotidiano do boleeiro Antônio Rocha na Cruz Alta do início do século XX  -  começa agora uma empreitada na internet para discutir a historiografia de Cruz Alta e região. Àqueles que tenham interesse, segue o link.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Experiência e cotidiano de um jovem boleeiro na Cruz Alta republicana.


Fabrício Renner de Moura

O presente texto faz uma breve incursão na vida pública e privada de Antônio Rocha, homem simples, boleeiro, cruzaltense e morador no subúrbio de Cruz Alta na década de 20 do século passado. Aos olhos da cultura letrada, Antônio é uma testemunha perturbadora, pois revela uma outra História urbana de Cruz Alta, não tão prospera e dinâmica como estamos acostumados a constatar.
Através da voz de Antônio e das vozes de seus companheiros de trabalho, percebemos a luta cotidiana, improvisação e resistência, diante da nova ordem de produção, de dominação e de poder que se estabelecia, inserindo os trabalhadores pobres a um sistema de trabalho com baixos salários e sem os mínimos direitos sociais e políticos, e ainda, uma voraz rede de vigilância policial e judiciária.
Nas palavras de Ecléia Bossi, quando a História da gente comum chega até nós ela arrepia[1], sem dúvida por trazer à tona os preconceitos, as perseguições e os sofrimentos que desclassificavam-nos socialmente, como, por exemplo, a condição de trabalhador manual e diarista, a organização familiar que se distinguia dos modelos instituídos por médicos, psicólogos, pedagogos e advogados, e, as condições de moradia localizadas nas áreas alagadas e mal cheirosas da cidade.
Portanto, mesmo que essas vozes tragam os dramas vividos no submundo do espaço urbano de Cruz Alta, é através destas que entenderemos a rotina dos conflitos, confrontos e solidariedades tecidos no imediatismo do cotidiano cruzaltense, e, assim revistar e refazer as verdades históricas, então vistas como estáticas e rígidas[2].  
         Antonio Rocha era um jovem boleeiro (profissão semelhante ao de taxista) residente na cidade de Cruz Alta nas primeiras décadas da República. Seu local de trabalho situava-se na praça Itararé, em frente ao prédio da movimentada estação ferroviária. Com um carro alugado ( dois cavalos e uma carroça), nosso boleeiro transportava passageiros e cargas por todos os cantos, e possivelmente estava a par de fofocas, intrigas e noticiais que corriam pela cidade, assim como, muitas historias particulares regadas por esperanças e desilusões. Assim, nestas estas idas e vindas, acabou formando com os usuários uma rede de relações e alguns poucos trocados.
         Trabalhador diarista, Antônio não possuía um salário fixo e ainda convivia com os constantes calotes de muitos clientes. A renda obtida nas longas horas de trabalho, mal garantia o sustento de sua família, como o alimento básico (açúcar, pão e carne) e o aluguel de uma pequena casa no bairro Barro Preto, subúrbio da cidade conhecido por suas casas de prostituição e suas agitadas tabernas.
         Nas horas em que não trabalhava, a diversão noturna estava próximo de sua casa, na rua Procópio Gomes número noventa e dois. Ali localizava-se o prostíbulo de Carolina e suas provocativas meretrizes. Com a companhia de uma rapariga e de algumas doses de trago, Antonio arriscava a sorte nos jogos de cartas e de ossos com os jovens filhos da elite local já bastante embriagados.
A promiscuidade era tanta, que certa vez o capitão Dinarte Vargas, homem de confiança do firminismo, e seus soldados da guarda municipal, tentaram fechar o estabelecimento para por fim aos atos praticados na casa e quase viraram uma peneira. Um intenso tiroteio entre os guardas e os freqüentadores do estabelecimento, rompeu com o silêncio da noite, não havendo alternativa para os homens da lei senão recuar as pressas para a intendência velha a poucas quadras do bairro.
Durante o dia, principalmente nos finais de semana, Antonio reunia-se com seus amigos e pela estrada de ferro Cruz Alta-Ijuí cortavam caminho até o recém inaugurado prado nos arredores do cemitério público municipal. Ambiente de muita competição e confraternização, estas corridas reuniam centenas de pessoas apaixonadas pelos velozes cavalos que rendiam uns bons trocados e uma vida social ativa. Antonio não agia diferente, apostava os tostões que tinha e aos berros proferia estímulos e palavrões ao jóquei e ao cavalo. As vezes a sorte estava do seu lado.
A dona Alicia, mãe de Antonio, advertia o filho sobre os perigos destas diversões. O receio dela era a violência que a farra, a prostituição, a jogatina e o álcool poderiam gerar, assim como possíveis problemas com a guarda de Firmino Filho que não costumava brincar em serviço, pois espancava e encarcerava na cadeia pública farristas, mendigos, crianças pedintes e bêbados que perambulavam pelas ruas. 
Alicia preocupava-se com seu filho mais velho e com as influencias dos seus amigos. Sem marido, algo imoral na época, e com mais duas filhas menores para educar, a ajuda de Antonio no sustento e no cuidado da família era fundamental e, assim, exigia do filho mais responsabilidade. Seu trabalho como lavadeira, cozinheira e faxineira em uma pensão para jovens militares do exército brasileiro, nas proximidades do quartel do 6° RAM., era cansativo e pouco remunerado, mas também era um local onde laços de amizade e de solidariedade eram formados para vencer a pobreza.
 Bem avisado por sua mãe Alícia e ciente das obrigações de homem da casa, Antonio cedo da manhã do dia vinte de junho de 1925 desloca-se vagarosamente até a praça Itararé. No caminho cruzava por leiteiros, padeiros, lenhadores, marceneiros, pedreiros, açougueiros, feirantes, barbeiros, alfaiates, comerciários, bancários, ferroviários, professores, advogados, médicos e empresários apressados pelas ruas empoeiradas e fedidas para iniciar mais um dia de muito trabalho.
 Aproximando-se da estação ferroviária, Antonio percebeu que o movimento de pessoas estava maior do que o habitual. Nos arredores da praça, as diligencias estavam paradas e os cavalos encarangados diante do forte frio matinal. No centro do logradouro público, os colegas cocheiros conversavam e gesticulavam com veemência diante do jornal do dia.
Antonio, sem saber ler e escrever, apressou-se ao encontro dos cocheiros a fim de saber o motivo do tumulto, e atentamente ouviu dos companheiros Francisco Dias, Manoel Rodrigues, Arrago de Valério, Antonio Figueiredo, Antonio Riolon, Juvêncio Soares, Nobre Adão, Felipe Mozhes, Quintino Vasconcellos e Saturnino da Silva, estes nervosos e revoltados, as palavras ofensivas editadas pelo jornal local o Commercio
A indignação dos boleeiros justificava-se. Na página quatro do espaço denominado Scenas d’aqui, as condições de trabalho e o modo como comportavam-se eram severamente questionados. Sem autoria, mas ocupando uma posição privilegiada no contexto da página, as idéias tecidas no texto não se distanciam da opinião do periódico e de grupos sociais abastados do município quanto a presença e o comportamento da população pobre nos espaços públicos da cidade.
 Constituída de sessenta e duas linhas, o texto segue o estilo jornalístico da época no Brasil, usando referencias teóricas cientificistas e biológicas preconceituosas[3], atribuindo qualidades degenerativas e racistas ao modo de vida e de trabalho dos boleeiros, acusando-os de relaxamento, ausência de comodidade e de bem-estar ao forasteiro que visitar esta Cruz Alta leal e valorosa
Ao longo do texto, são relatadas as condições das carruagens com seus bancos quebrados e sujos, puxados por matungos magros, fracos e sarnentos. A irregularidade na manutenção das rodas e dos arreios, assim como, o comportamento dos cocheiros que através de berros, gritos e socos buscavam a preferência do cliente, também eram descritos com indignação, ainda mais que o palco destas relações davam-se nos cartões postais da cidade, a praça Itararé e a estação ferroviária.
Cabe aqui destacar, que as redações dos jornais eram espaços de confluências de mentalidades na passagem do século XIX para o XX[4], nesse reduto das letras, calorosas discussões e debates sobre projetos políticos da intelectualidade cruzaltense ocorriam e suas impressões sobre o mundo e o ambiente urbano de Cruz Alta formavam as páginas semanais do O Commercio e do O Cruz Alta.
 Assim, com a chegada da ferrovia à cidade, em novembro de 1894, estancieiros, comerciantes, médicos, professores, advogados, políticos e intelectuais, pressionavam a intendência municipal para realizar uma série de reformas urbanas no centro de Cruz Alta. Portanto, abrir avenidas, empedrar as ruas centrais, arborizar as praças, instalar redes de água encanada, de esgoto, de energia elétrica e de telefonia, e, limpar do centro mendigos, prostitutas e vadios representavam a modernização dos espaços públicos da cidade e a reprodução de valores morais burgueses.
Em sintonia com as grandes, médias e pequenas cidades européias e norte-americanas, a intelligensia cruz-altense acreditava nos benefícios produzidos pela era da ciência e das máquinas, até porque, o impacto da operação do transporte ferroviário e da substituição da luminosidade dos candelabros de óleo de querosene, pela luz elétrica, fora sentido positivamente no dia-a-dia da população.
Eufóricas, as famílias de bens da cidade desejavam construir um espaço afrancesado no centro da cidade, na qual, a rua do Commercio passaria a ser o símbolo desse processo, tanto que recebeu as primeiras reformas urbanas, principalmente o trecho entre as praças Itararé e Matriz. Por conhecidência, é nesta rua e nas travessas (ruas Mariz e Barros, Gal. Osório, Maurity, João Manoel, Andrade Neves, Gal. Pillar, Sete de Setembro e Coronel Martins) que localizavam-se os espaços de convívio (o teatro Carlos Gomes, o Cine teatro Biógrafo Ideal, as redações dos jornais, o Centro Republicano, a Intendência municipal, os clubes do Comercio e do Arranca, e as luxuosas casas comerciais), de trabalho e de domicilio das elites cruz-altenses.  
Diante disso, as elites letradas desejavam limitar o trânsito da população pobre pelas ruas modelos da cidade, controlando o vai e vem de muita gente (vendedores ambulantes e meninos pedintes, jogadores e sapateiros, prostitutas e oleiros, vagabundos e lavadeiras, milicos e golpistas, carpinteiros e pedreiros, farristas e mendigos), que diariamente reproduziam comportamentos e costumes dispares aos novos tempos.
Tão logo iniciou-se a construção do espaço elitizado, a intelectualidade cruzaltense voltou seus olhos para os boleeiros, mensageiros e cocheiros e demais condutores de carroças e de carretas que percorriam todos os espaços da cidade, inclusive as ruas afrancesadas do centro, principalmente a rua do Commercio.
Há muito tempo, os ilustrados tinham interesse em limitar o acesso deste transporte e de seus condutores ao centro, e assim, solicitavam à intendência um controle mais rigoroso das carroças, que além de pesados e sem molas, prejudicará o calçamento, que ficará danificado[5]. O valor simbólico também fazia-se presente nas exigências, pois este transporte lembrava os tempos coloniais, incompatível com o cenário moderno que a passos lentos se desenvolvia.
Entretanto, mal sabiam os grupos sociais dominantes que esquecer o passado é impossível, mesmo quando medidas repressivas são adotadas para eliminar os costumes coletivos e individuais considerados velhos[6]. A intendência, por exemplo, utilizava as carruagens para recolher os lixos e demais dejetos fabricados pela população, assim como, outros carroceiros transportavam todos os tipos de cargas: madeiras, alimentos, animais e entulhos. Ou seja, tanto os cocheiros, quanto os carroceiros e carreteiros são de suma importância para o funcionamento do comércio e dos serviços públicos e particulares de Cruz Alta.  
Antonio e seus companheiros não se deixaram abater. Depois do momento de fúria, com muitos palavrões, xingamentos e ameaças, era hora de voltar ao trabalho e enfrentar os modernos através da força das palavras. No dia dois de julho, doze trabalhadores da boléia, inclusive Antonio Rocha, publicaram na página sete do jornal O Commercio, o texto intitulado A verdade com o propósito de responder os insultos ao público e aos trabalhadores desta humilde sidade.
Antes, cabe fazer algumas considerações a respeito do texto. Tudo indica que esse manifesto fora elaborado pelos próprios trabalhadores, não apenas por ter sido reconhecido em cartório, o que supostamente dificultou a manipulação de seu conteúdo pela redação do jornal, mas pela grafia e o vocabulário usado pelos mesmos em um veículo de comunicação de linguagem formal e com um público alvo definido.
Essa maneira particular de jogar com as palavras em um reduto exclusivo do discurso dominante, trouxe a possibilidade de entender a formulação de expressões lingüísticas desse grupo social, na qual aqui entendemos como estratégia de afirmação, assim como uma possibilidade de conhecer a percepção dos próprios trabalhadores como sujeitos sociais e o que sentiam diante das perseguições das classes cultas em um contexto de mudanças na cidade.  
Sem poupar adjetivos ao autor do artigo do dia 20 de junho, os cocheiros já no inicio do texto acusam-no de insultador e de grosseiro por ter publicado um artigo escandaloso, pois são pobres e esmeram-se para ganhar o pão honesto.
A resposta às acusações buscou desfazer a imagem negativa que havia sobre a categoria, trazendo para a comunidade local e, quiçá regional o outro lado do dia-a-dia do trabalho dos boleeiros, até então, ocultados pela imprensa. Defenderam três aspectos, a viabilidade econômica da atividade, a responsabilidade com o trabalho que resulta numa conduta social compatível com as convenções capitalistas, e , o respeito da sociedade pela categoria.
Os boleeiros trataram de ressaltar as boas contas que geravam ao patrão, exaltando a lucratividade de um transporte de suma importância para as relações comerciais da cidade. Diante disso, não permitiam ser retratados como borradores das tavernas, e sim como trabalhadores honestos e habituados aos rigores do trabalho, já que não geravam dispêndios.
A apropriação por parte dos boleeiros a ideologia do trabalho possivelmente serviu para passar uma imagem de boa conduta, mas também significou a integração numa sociedade que desde a Proclamação da República vinha reproduzindo, sobre pressão política, os valores do capital. Afinal, como ressaltou Chalhoub, foi com o regime republicano que o homem livre, o imigrante e o ex-escravo foram transformados em trabalhador assalariado[7].  
No entanto, admitem que nem todos trabalhadores eram caprichosos, assim como também não condenam os companheiros que não seguiam os modelos burgueses. Atribuem a falta de asseio e de estrutura das carruagens aos muitos passageiros que não pagavam a corrida ao pobre bolieiro que com sacrifício lhe conduz ao médico, ou conduz o médico para salvar seu filhinho.
 Desta forma, exercer com decência a profissão era cada vez mais difícil já que os custos dos equipamentos, como a manutenção do veículo e o alimento para os animais eram elevados.
Esse argumento chocava-se com as ideias burguesas reproduzidas nos periódicos da cidade. Para os trabalhadores, a condição econômica determinava as dificuldades de trabalho da categoria, enquanto que para os setores endinheirados o vinculo alcoolismo, indecência e desobediência civil valia para explicar as atuais condições que a categoria encontrava-se, e se fosse preciso  suprimi-la do cotidiano da cidade. Por fim, queriam ser respeitados, pela sociedade como pelas autoridades, tanto que (...) viemos unânime representar contra a selvagem inçulta.
Mas o que acontecera com Antônio após o manifesto publicado no jornal? Algo mudou em sua vida? 
As agressões verbais e morais por parte das instituições do Estado prosseguiram. Como observamos, na República Velha a população pobre enfrentou um período de repulsa e de perseguições dos aparatos policial e judiciário, assim como, de setores produtivos, ambos com objetivo de suprimi-los da sociedade sadia e higienizada.
Diante disso, mesmo com as perseguições e as dificuldades econômicas, Antônio prosseguiu sua vida elaborando estratégias para burlar a pobreza e sobreviver. Residindo em uma casa alugada com a mãe Alicia e as duas irmãs, Clara e Natália, a primeira com dezesseis anos e a última menor de dez anos, Antônio tratou de aumentar a renda familiar e passou a trabalhar nas horas que não atuava na boleia na casa comercial de Júlio Gruhn, localizado nos taquarais da alagada rua Aurora.
O seu Gruhn como era chamado no barro preto, era um senhor de meia idade, estatura baixa, gorducho com um rosto arredondado e salpicado. Tinha a mania de morder um pequeno pedaço de madeira, semelhante a um palito, e, no ombro direito carregava um pequeno pano encardido para limpar qualquer sujeira que via na sua frente. Não possuía arma de fogo, ao menos era o que se comentava, mas debaixo de seu balcão havia um conhecido facão usado para intimidar os caloteiros e os brigões freqüentadores da casa.
A casa vendia de tudo, desde gêneros alimentícios como farinha, arroz, açúcar, feijão, banha e produtos vindos das colônias, a ferramentas e matérias de couro para montaria. No entanto, o novo emprego não agradou a família do jovem boleeiro. Alicia sabia da reputação da venda, pois no local também comercializavam-se bebidas alcoólicas, promoviam-se jogos de roleta e de cartas durante o dia e a noite e ocorriam encontros amorosos as escondidas. Além disso, Julio Gruhn costumava comprar produtos roubados por menores abandonados das lojas do centro e dos armazéns e trens da estação ferroviária. 
Antônio encarregava-se de atender os clientes e de entregar encomendas a domicílio na cidade e no interior do município. Com a carreta abarrotada de mercadorias, percorria as ruas empedradas e esburacadas da cidade para entregar as encomendas. Também eram seguidas as viagens até os distantes povoados de Santa Bárbara, Três Capões, Porongos, Jary com suas estradas tortuosas e sujeitas as investidas dos assaltantes.
Mas, não havia outra saída. Morador de um bairro hostilizado pela comunidade “culta” da cidade, pobre e ainda sem conhecer alguém que trabalhasse nas casas ou nos estabelecimentos comerciais de políticos e empresários, Antônio dificilmente encontraria emprego nos bazares, nos cafés e nos cine-teatros da cidade.
Enquanto isso, dona Alicia prosseguia trabalhando na pensão para militares. Temerosa com os assaltos no bairro, e com Antonio na maioria das vezes fora de casa, Alicia passou a levar suas duas filhas para o trabalho graças o consentimento de sua patroa, dona Norma, que transformou sua casa em pensão após a chegada do Regimento de Artilharia. Do amanhecer ao anoitecer, jovens militares oriundos de todo os cantos do país entravam e saiam da pensão para alimentarem-se ou para entregar as trouxas de roupas a serem lavadas.
As meninas, Clara e Natália, sob o olhar atento da mãe, ajudavam no serviço com trabalhos leves, mas no interior da pensão. Ajudavam a limpar os utensílios domésticos e a estender a infinidade de roupas dos rapazes. Raramente apareciam aos olhos de praças e oficiais do exército, conhecidos na cidade pelas farras. Quando entravam na sala, as meninas logo tratavam de sair do recinto intimidadas e embaraçadas devido os olhares dos praças que não perdiam a oportunidade de soltar alguns gracejos.
Numa dessas olhadas, o terceiro sargento Guilherme Massaro, natural de Bom Principio, recém saído de um orfanato em Montenegro interessou-se por Clara. Com vinte quatro anos de idade, o jovem sargento, órfão de mãe desde os seis anos, e então separado dos três irmãos, alistou-se no Regimento de Artilharia de São Leopoldo como soldado transferindo-se já como terceiro sargento para Cruz Alta.
Sem parentes e amigos, Guilherme praticamente residia no 6º Regimento e com o passar do tempo formou sua rede de amizades com companheiros de farda oriundos das colônias de Gal.Osório(hoje a cidade de Ibirubá), Neu-Wurtemberg (hoje Panambi) e de outras cidades do país Natal, Mogi-Mirim, Lapa, Lages. Fora da caserna, Guilherme freqüentava tabernas e pensões do bairro, na qual conheceu a pensão de dona Norma e a família de Alicia. Desse convívio resultou seu interesse pela jovem Clara.
Em pouco tempo casaram-se, e com o consentimento de Alicia e de Antônio passaram a morar na casa da família Rocha. Entre breves discussões, em principio pelo pouco espaço numa casa sem cômodos e o único banheiro localizado nos fundos do quintal, e, manifestos solidários, com o tempo Antonio e Guilherme tornaram-se grandes amigos.
A ajuda de Guilherme seria fundamental para Antônio vencer o vírus da gripe, contraído nas idas e vindas pelos campos do interior, quebrando geada ou no frio do entardecer,e, as vezes dormindo na estrada coberto com poucos trapos. Antônio com febre alta e alucinações fora transportado as pressas até a farmácia Peixoto, mas precisou ser atendido no único hospital da cidade São Vicente de Paula, e por lá ficou isolado durante uma semana com outros doentes em um pavilhão frio e sem receber visitas, conforme a ordem do médico Franklin Veríssimo.
 Alicia desesperada não desgrudava de seu oratório repleto de rosários e  imagens de santos católicos como São Francisco de Assis, Santo Antônio, Santa Catarina e a imagem do Divino Espírito Santo abençoada pelo padre da Catedral José Spoenhlein, muito querido na comunidade. Clara e Natália, além de rezarem por horas o terço e prometerem sua alma para que o irmão se salvasse, caminhavam pelos terreiros de umbanda espalhados nos subúrbios da cidade.
Um deles localizava-se nas margens da estrada de ferro para Passo Fundo, muito procurado por pessoas simples e abastadas da cidade. A mãe Joaquina, descendente de escravos com seu conhecido vestido branco e um fino cigarro importado da sans-autout entre os dedos, presente de algum agradecido, ciente da doença de Antonio pediu uma tigela com pipocas, erva barba de boi e peças de roupas de cores preta, vermelha e branca para oferecer ao orixá obaluiaê, divindade que rege as doenças.
Transitando entre a ciência médica e elaborando um rico sincretismo religioso, após um mês de agonia Antônio sente-se bem. Debilitado fisicamente pela doença, o seu retorno ao trabalho é demorado e os poucos trocados dos dois empregos que possui fazem muita falta. Nesse ínterim, sua mãe conheceu o maquinista de trens Justino Rosa, natural de Santa Maria e já há alguns anos em Cruz Alta. Alicia perdera seu marido, vítima de assassinato em um dos meretrícios da Capoeira, região oeste da cidade, quando Antonio tinha cinco anos de idade. Desde então, não se relacionara com ninguém, até conhecer Justino que freqüentava diariamente uma cancha de bocha de fronte a sua casa.
De certa forma, com a presença de Justino no seio da família Rocha, a situação financeira modificou. O maquinista, mesmo com pouco ordenado passou a ajudar no sustento da casa e mesmo na educação da jovem Natália matriculando-a em cursos de corte e costura oferecidos na recém inaugurada Cooperativa dos Ferroviários, mais tarde no Colégio de freiras Santíssima Trindade.
     Antônio, seus companheiros de trabalho e sua família sabiam que tinham que enfrentar uma opinião publica embebecida pela modernidade e convencida que os maiores entraves para o progresso da nação estavam situados nos bairros alagados onde ninguém queria morar.  E numa tentativa, talvez desesperada, os boleeiros de Cruz Alta desafiaram os obstáculos da língua culta e penetraram num território dos intelectuais do poder não somente para responder a uma provocação, mas para revelar as dificuldades de quem não tinha condições de comprar uma cesta básica (arroz, feijão, açúcar, sal, banha) que custava sessenta mil reis.
A despeito de uma estrutura que vigiava e desconsiderava as dificuldades da vida da gente comum, a solidariedade entre familiares e amigos fora a melhor estratégia para burlar tamanha miséria. Experiências que trouxeram à tona imagens desconhecidas da Cruz Alta Paris das missões, no entanto, reveladoras de uma identidade em comum desenhada cotidianamente por pessoas de carne e osso, como disse Thompson, sujeitos que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida “tratam” essa experiência em sua consciência e sua cultura[8].


                                             





[1] BOSSI, Ecléia. As outras testemunhas. p. 04. In: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984.
[2] BOSCHI, Caio César. Por que estudar História? São Paulo: Ed. Ática, 2007. p. 29.
[3] GUIMARÃES, Valéria. Os dramas da cidade nos jornais de São Paulo na passagem para o século XX. Revista Brasileira de História, v. 27, n. 53, São Paulo, 2007. p. 02.
[4] MORAES, Adriana dos Santos. Em novela de 1897, uma imagem da cidade em direção da modernidade Estrychnina: na Porto Alegre do final do século XIX, e o moderno se envergonha de desejo. Dissertação de mestrado na PUCRS, 2006.
[5] O CRUZ ALTA, 22 de outubro de 1908. p. 02.
[6] HABERMAS, Jürgem. Modernidade versus pós-modernidade. Texto apresentado pelo autor durante a entrega do prêmio Theodor W. Adorno, Frankfurt, setembro de 1980.
[7] CHALHOUB, Sidnei. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2 ed. Campinas, SP: Editora de Unicamp.  p.46
[8] THOMPSON, E.P.  A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.  p. 182

quinta-feira, 2 de junho de 2011

A engenharia da terra

Estive fazendo um trabalho de contrato nos últimos dias, em Rio Grande. Tive a oportunidade de encontrar um cerrito:


Para uma melhor explicação do que seria, indico o blog do colega e amigo Marlon Borges Pestana:

sábado, 14 de maio de 2011

Arqueologia de contrato, ou por que um arqueólogo abandona seu blog

O blog anda parado, eu sei, e peço desculpas àqueles que acompanham o nosso trabalho. Começamos com um post em conjunto e, desde então, temos revezado, ora eu, ora o Fernando, com postagens sobre o andamento de nossas pesquisas. Afora algumas pequenas postagens que independem desse revezamento, essa tem sido a nossa lógica de trabalho aqui no blog. Como o último post foi do Fernando, sobre sistemas de assentamento e as hipóteses para a ocupação pré-colonial dessa área que hoje chamamos Cruz Alta, o próximo texto arqueológico seria meu, e de fato deveria ter sido escrito e postado há muito tempo atrás. Não foi por mal, juro.

Hoje eu retomo a atividade no blog, embora ainda não seja pra falar de arqueologia histórica, tampouco da falada "Cruz Alta arqueológica". Contudo, é um tema que tem tudo a ver com aquilo que propomos para a cidade, e ao fim do texto espero que vocês também percebam a relação.

O fato é que há um motivo bem claro e simples para eu não ter escrito nada no blog nos últimos vinte dias: dinheiro. Como quase todo mundo, não sou rico e não posso me dar ao luxo de apenas estudar. Preciso trabalhar. Mas... aonde exatamente trabalha um arqueólogo? Muitos trabalham em universidades, como docentes e pesquisadores; mas outros - a grande maioria - trabalham em outro ramo, comumente chamado arqueologia de contrato.

Não entrarei em detalhes - acho que não é o caso - mas desde meados dos anos 80 a arqueologia está inserida nos estudos de impacto ambiental, isso em âmbito federal. Os grandes empreendimentos (rodovias, ferrovias, usinas hidrelétricas, complexos industriais, etc) só se concretizam mediante licenciamento ambiental; precisam financiar estudos de impacto ambiental e agir de acordo com a legislação vigente para obter as licenças para construir e funcionar. Contratam então empresas, ongs, ou universidades que realizem os estudos necessários. E sendo os bens arqueológicos tidos como patrimônio da união, sua preservação é de interesse do Estado, que embora não contenha a destruição, mitigue as perdas com a legislação. No caso específico da arqueologia, empresas de consultoria científica são contratadas para realizar: diagnósticos, verificar o potencial da área; prospecções, busca por vestígios de ocupação humana que caracterizem um sítio arqueológico; e quando idenficados os sítios, fazemos o resgate, ou salvamento, ou seja, a escavação propriamente dita, escavada com cuidado, com controle, com registro, para que se possa estudar o acervo de cultura material daí proveniente, associado ao registro feito em campo, das plantas baixas e desenhos de perfis estratigráficos, etc... e claro, o próprio arqueologo, que usa de modelos teóricos e metodológicos para compreender e tratar os dados. Enfim, estes estudos são tornados relatórios entregues às empresas contratantes e ao Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que o analisa e dá - ou não - a licença. Muitos viram dissertações de mestrado e teses de doutorado também. Enfim, muitas empresas fazem isso de boa vontade, outras gostariam de mandar o licenciamento ambiental à PQP, mas não interessa. É isso ou multa.

Enfim, calhou que eu fui chamado pra um trabalho, e como precisava de dinheiro, vim para Imperatriz, no sul do Maranhão, para trabalhar no resgate de um sítio arqueológico pré-histórico. Nesse caso especificamente, a obra já encontrava-se em andamento. Em boa parte do terreno a vegetação já havia sido suprimida e os morros terraplanados. Apenas a área em que trabalhávamos estava preservada, exatamente porque tendo sido identificado o sítio arqueológico, a empresa só pode atuar na área após efetuado o estudo, e o relatório entregue e aprovado pelo IPHAN. Quando isso ocorrer, vai tudo abaixo... árvores, o morro inteiro! Se há um porém neste trabalho, é a tristeza de ver as máquinas arrasando tudo...

E acreditem, escavar sob o sol quente e o clima abafado de Imperatriz não é nada fácil.




Bem, e o que isso tem a ver com Cruz Alta, que afinal está no título do blog? Nada, em um primeiro olhar. Mas por outro lado, o que eu quero destacar é a inserção da arqueologia nos estudos de impacto ambiental em âmbito federal, o que acontece também em muitos estados e municípios. A questão é que a lei federal abrange áreas grandes, ao passo que em geral no meio urbano os lotes são menores, e a lei não se aplica. Nestes casos, é o município que legisla. Porto Alegre, por exemplo, tem uma arqueóloga em seu quadro funcional, e um programa já tradicional de arqueologia urbana. Santo Ângelo, vizinho à nossa cidade, conta também com uma arqueóloga na prefeitura, que leva a cabo estudos arqueológicos prévios a novas edificações na cidade.

Cruz Alta ainda não acordou para isso; talvez ainda demore. (Num município onde se declaram a plenos pulmões o passado e os feitos históricos, que tem dois museus mas nenhum muséologo - profissional que poderia facilitar a entrada de recursos para resolver os diversos problemas de nossos museus por meio de leis de incentivo à cultura, por exemplo - há algo muito errado com as políticas culturais. No mínimo, desinteresse).

domingo, 24 de abril de 2011

Cruz Alta Arqueológica no Diário Serrano

Pois é, hoje o caderno Especial Domingo, do Diário Serrano, publicou uma matéria sobre nossas pesquisas na cidade. Antes de tudo, agradecemos ao jornal pelo espaço, que foi de fato bem maior do que imaginávamos. Houve apenas uma pequena confusão, e aproveito aqui para corrigi-la. Na foto na parte superior da página 2 do caderno, estamos eu e o historiador Fabrício Renner de Moura - que estuda a história da cidade - em uma de nossas idas ao arquivo histórico municipal. Fabrício não atua diretamente conosco, mas por termos um interesse acadêmico próximo, dialogamos bastante e fizemos algumas pesquisas em conjunto durante as férias. Na parte inferior da página, aí sim, estamos eu e Fernando Silva de Almeida (de boné preto).

terça-feira, 12 de abril de 2011

Conferência cultural Diálogos culturais

Reproduzo aqui o convite publicado no blog Cultura Cruz Alta.

CONVITE
A Secretaria Municipal de Cultura de Cruz Alta e Secretaria de Estado da Cultura - SEDAC convidam para a Conferência Regional da Cultura "DIÁLOGOS CULTURAIS" a ser realizada no dia 16/04/2011, das 8h às 13h, na Casa de Cultura Justino Martins, Cruz Alta.
A Conferência tem por objetivos discutir e apresentar propostas para a política cultural em nível local, regional e estadual, o Sistema e o Plano Estadual de Cultura, além de dar início à construção de colegiados setoriais de cultura no Rio Grande do Sul.
A Conferência é aberta à participação de todos.

Não sei vocês, mas nós estaremos lá.

Um sistema de assentamento pré-histórico

Peço desculpas pelo atraso no post. Durante o mês de março estive bastante atarefado, estudando e terminando o texto para a qualificação, uma etapa na qual os professores avaliam o desenvolvimento inicial da pesquisa. Em função disso, estive pensando em alguns temas para abordar, e o que mais achei interessante foi o tema temporariamente barrado na minha qualificação: O sistema de assentamento.

Como já havia afirmado anteriormente, recentemente evidenciamos sítios arqueológicos pré-históricos em Cruz Alta. Vestígios de grupos indígenas do passado que ocuparam a região muito antes do período colonial. Sabemos que se trata possivelmente de uma ocupação de grupos que possuíam um modo de vida baseado na caça e coleta de alimentos. A figura acima – que não representa algum grupo cultural específico – ilustra um pouco sobre o modo de vida desses povos.

Como a escavação programada para o fim de 2010 apresentou alguns imprevistos, realizei uma pesquisa em sítios arqueológicos encontrados na região – através do cadastro eletrônico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – procurando identificar sítios com características semelhantes aos sítios encontrados em Cruz Alta. O entendimento sobre a cultura material pré-histórica da região pode identificar uma possível relação entre os sítios encontrados com outros identificados e cadastrados no IPHAN. Essa pesquisa ainda está em andamento, já que este mês pretendo visitar alguns lugares onde poderei encontrar mais informações sobre as prospecções arqueológicas realizadas no noroeste do Rio Grande do Sul. Enquanto não realizo essa investigação, exponho algumas observações a respeito do estudo dessas sociedades pré-históricas.

Alguns arroios que cruzam o município são afluentes da bacia do Rio Ijuí. Por sua vez, essa bacia hidrográfica faz parte da bacia do Rio Uruguai, curso de água que abriga próximo às suas margens, os sítios arqueológicos – associados a grupos de caçadores-coletores – mais antigos do Estado. Em períodos mais recentes, nota-se aparecimento de outros sítios arqueológicos na bacia do Rio Ijuí, ou seja, a concentração de sítios arqueológicos que existia ao longo do Rio Uruguai, agora começa a se distribuir por outras áreas do Estado.



Comparação entre as primeiras ocupações de caçadores-coletores e a dispersão deles pelo Estado (retirado de SCHMITZ, 1991, pp. 26-27).

O que é interessante pensar é que esses sítios arqueológicos de Cruz Alta podem ser ocupações resultantes de movimentos migratórios ao longo da Bacia do Rio Ijuí. Tal afirmação se configura a partir do deslocamento de grupos pré-históricos a partir do curso dos rios, já que seus acampamentos localizam-se sempre próximos aos cursos de água.

Por fim, pensei em entender esses sítios localizados em Cruz Alta a partir de um possível sistema de assentamento dos grupos pré-históricos, isto é, perceber a possibilidade dos 5 sítios arqueológicos evidenciados serem parte de um mesmo sistema cultural, ou não. É possível, quem sabe, averiguar esse tipo de constatação a partir da escavação dos sítios. Porém, os imprevistos aconteceram – tanto na banca de qualificação da dissertação, quanto no que diz respeito à escavação que não aconteceu – e é importante agora prosseguir buscando alternativas para se estudar Pré-História em Cruz Alta.


SCHMITZ, Pedro Ignácio. O Mundo da caça, da pesca e da coleta. In: Pré-História do Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Instituto Anchietano de Pesquisas, 1991.



segunda-feira, 4 de abril de 2011

Voltando à programação normal.

Nossa! Mais de um mês sem novas postagens. Pedimos desculpas. Durante este hiato no blog estivemos na cidade na Pelotas cumprindo alguns compromissos relativos a nossos estudos. Agora, de volta, retomaremos nossas pesquisas e regularizaremos as postagens nos próximos dias. Até logo.

quarta-feira, 2 de março de 2011

"Belas fachadas, não?"

Imagine-se na posição de um viajante que vem pela primeira vez a nossa cidade. Ao ver a profusão de fachadas antigas, exibindo diferentes épocas, técnicas e estilos, e tendo uma câmera fotográfica em mãos, este viajante hipotético talvez fizesse várias fotos, para depois mostrar a seus amigos e familiares os  belos prédios históricos de Cruz Alta. Suas fotos poderiam ser como estas...








Não é preciso ser um excelente fotógrafo. A beleza de muitas destas fachadas fala por si. Porém embora sejam prédios distintos, todas estas fotos têm algo em comum. Por mais que tentasse, nosso turista não conseguiria desvencilhar-se da quantidade de postes e (principalmente) fios elétricos e telefônicos que, baixos demais, teimam em ficar entre a casa e o fotógrafo. Ao retornar para sua cidade de origem e mostrar as fotos a seus amigos, talvez nosso turista dissesse:
- Belas fachadas, não? Pena que os fios atrapalharam a foto...

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Lendo Erico Veríssimo

Flávio Loureiro Chaves diz que


A literatura brasileira sempre registrou as grandes transformações sociais, adquirindo com freqüência um aspecto documentário para trazer ao debate as profundas alterações das forças detentoras do poder econômico e político. Daí porquê, no caso de Érico Veríssimo, a ficção nunca se desvinculou da função de instrumento válido para a interpretação da realidade circundante.
Hoje, gostaria de falar um pouco de como a literatura tem me ajudado a construir um quadro mais completo daquilo que busco na minha pesquisa. Recentemente li "Solo de clarineta", de Erico Veríssimo. Na verdade, o primeiro de dois tomos de uma edição de 1980. Confesso que até então carregava comigo um certo preconceito com o escritor. Nada contra sua obra, afinal não a conhecia diretamente. Contudo, nunca fui afeito às associações do tipo "Cruz Alta: terra de Erico Veríssimo" e isso de certo modo fez com que não tivesse muita vontade de lê-lo.
Tenho tentado compreender a paisagem da cidade; como práticas sociais e interesses individuais ou de grupo, econômicos, sociais e políticos, se articularam na produção e utilização da paisagem urbana e como, pelo processo histórico, tornaram a cidade tal como a conhecemos hoje. E com "cidade" refiro-me exatamente a esse palimpsesto de ruas, casas e pessoas que construíram, habitaram, transformaram e deixaram suas marcas nestas ruas, casas, edifícios e praças de Cruz Alta. As vidas e práticas sociais que tiveram lugar nos primeiros anos da cidade se perderam, mas muitos vestígios materiais destas vidas e práticas permanecem entre nós.
Para fundamentar minha pesquisa, tenho procurado diferentes fontes: documentos, livros, dissertações, teses, artigos... Em um dado momento, porém, senti falta de uma experiência mais humana da cidade, que não se propusesse a ser neutra ou científica. E isso acabou me levando a Erico Verissimo...

Ainda em Pelotas, em fins de 2010, encontrei no Sebo Icária (na Dom Pedro II 838, pertinho da praça Cel. Pedro Osório, no centro... vale a viagem) alguns volumes por um preço razoável. Comprei "O continente" 1 e 2, "Incidente em Antares" e uma edição em dois tomos de "Solo de clarineta", que por ser um livro de memórias do escritor foi o primeiro que decidi ler. Sem tomar o livro como uma verdade absoluta, mas considerando-o exatamente o que é - um livro de memórias - queria tentar compreender como Erico lembrava de sua vida no período em que aqui viveu. Por quais ruas andou, que personagens conheceu, de que atividades sociais participou... Fui imediatamente absorvido pelo livro, pelo estilo, pela narrativa. Por mais de uma vez me percebi sorrindo e concordando com diversas opiniões e reflexões do romancista. Em determinado trecho do livro, ao falar sobre a ideia de produzir seu romance histórico "O tempo e o vento", Erico escreveu que


Para o menino e para o adolescente – ambos de certo modo sempre presentes no inconsciente do adulto –, o poético, o pitoresco e o novelesco eram atributos que raramente ou nunca se encontravam em pessoas, paisagens e coisas do âmbito nacional e muito menos do regional e ainda menos do municipal. Nossos livros escolares – feios, mal impressos em papel amarelado e áspero – nunca nos fizeram amar ou admirar o Rio Grande e sua gente. Redigidos em estilo pobre e incolor de relatório municipal, eles nos apresentavam a História do nosso Estado como uma sucessão aborrecível de nomes de heróis e batalhas entre tropas brasileiras e castelhanas. (Ganhávamos todas). Nossos pró-homens pouco mais eram que nomes inexpressivos, debaixo de clichês apagados, em geral de retícula grossa: sisudos generais, quase sempre de longas costeletas, metidos em uniformes cheios de alamares e condecorações; estadistas de cara severa especados em colarinhos altos e engomados. [...] Concluí então que a verdade sobre o passado do Rio Grande devia ser mais viva e bela que a sua mitologia. E quanto mais examinava a nossa História, mais convencido ficava da necessidade de desmitifica-la.
Ler este trecho foi uma boa surpresa. O que Veríssimo escreveu relaciona-se diretamente com nossos objetivos de demonstrar que outras dimensões da história podem ser estudadas a partir dos vestígios arqueológicos. A ficção sem dúvida trata de pessoas muito mais reais que os generais, coronéis, políticos e estancieiros que por vezes a história parece tratar, uma vez que ela é escrita muitas vezes com base exclusivamente em documentos oficiais, administrativos, judiciais, cartoriais. Desse modo, fui buscar no solo de clarineta de Erico as memórias registradas por este conterrâneo que vivenciou por um período de sua vida a paisagem urbana e social da Cruz Alta durante parte do século XX. Um registro de modo algum mais neutro ou verdadeiro que o de um historiador, mas muito mais pessoal, mais espontâneo, mais vivo... Uma visão posicionada, é claro! Erico olhou Cruz Alta de sua própria posição social e a partir de suas idiossincrasias individuais. Se tivesse hoje em mãos as memórias de um peão de estância, de um neto de escravos, de uma lavradora que viveu da extração da erva-mate ou de um comerciante, teria representações diferentes da cidade e de suas pessoas. (E como seria bom se estas memórias hipotéticas realmente existissem...).

Ao falar de sua vida familiar, das andanças com os amigos, dos personagens que frequentavam seu meio social, Erico fala de uma Cruz Alta que raramente aparece nos livros de história, e realmente colabora na desmitificação dessa história no momento em que fala de pessoas comuns, vivendo suas vidas cotidianas. Vidas mais parecidas com as nossas (com a minha, pelo menos). O escritor descreve personagens cujos nomes não ficaram imortalizados nas placas das esquinas ou nas fachadas das escolas; fala de práticas sociais que se davam em outros planos que não os movimentos revolucionários e decisões políticas - embora obviamente ligadas a estes. E mais importante, ao menos para os meus objetivos, fala sobre como foi viver na Cruz Alta de outros tempos.
Apenas para ficar em um exemplo, em dado momento Erico fala sobre a cidade.


Como era Cruz Alta em 1926? Ora, era uma cidade sem rios nem lagoas, plantada em cima dum coxilhão, a quase quinhentos metros acima do nível do mar e dotada de bons ares. Podia-se dizer que seu eixo era a Rua do Comércio, que começava na frente da estação ferroviária e, indo de praça a praça, chegava até umas ruelas baixas e esbarrondadas, onde terminava. De lá avistavam-se as suaves coxilhas em derredor, com seus capões azulados e suas estradas e barrancos, que mais pareciam talhos – ora dum vermelho de sangue de boi, ora dum amarelo-alaranjado – abertos naquelas terras vestidas dum verde vivo e lírico. Umas três ou quatro ruas paralelas ou transversais à do Comércio tinham certa importância. Na sua maioria não estavam pavimentadas de paralelepípedos, de sorte que quando sopravam ventos erguia-se do solo [...] uma poeira avermelhada que deixava, muros casas e caras um tanto encardidos.
Comparar é inevitável. Muita coisa é diferente na Cruz Alta de 2011. Por outro lado... a Rua Pinheiro Machado não é ainda a rua do comércio? Não é ainda hoje o centro comercial da cidade? (E o final  - ou começo, se considerarmos a atual numeração da Pinheiro Machado - ainda não é uma "ruela baixa e esbarrondada"? Aqueles que como eu moram ou passam por este trecho sabem do que estou falando). Talvez seu antigo nome fizesse mais sentido. Em um determinado momento, porém, foi decidido que um  ilustre cidadão merecia uma homenagem, e desde então a rua é de Pinheiro Machado, que desafortunadamente não circula mais por lá.

Mas voltemos à Erico Veríssimo. O fato é que a experiência de ler "Solo de clarineta" não poderia ter sido melhor. Fui completamente envolvido pelo livro. Inicialmente tencionava ler apenas o período referente à vida de Erico em Cruz Alta, mas sua narrativa me enredou de tal maneira que avancei até suas memórias de Porto Alegre, da vida nos Estados Unidos... Ao terminar este livro, de imediato emendei a leitura de "O continente", parte de uma das grandes obras da literatura brasileira, "O tempo e o vento". Trata-se inegavelmente de um livro de história do Rio Grande do Sul, melhor que muitas obras historiográficas que se propõem a tratar do tema. Veríssimo destaca também a famosa belicosidade do gaúcho, mas aqui a vemos não pelos olhos dos famosos generais, mas pela visão das mulheres que esperavam aflitas por seus maridos e  filhos, e por estes mesmos, muitas vezes recrutados a força para combater em guerras das quais não sabiam muito bem os motivos. Erico sem dúvida sabia construir personagens densos e interessantes. Na miríade de figuras que o escritor apresenta, tive especial afeição pelo Dr. Carl Winter, médico alemão que se instalou em Santa Fé, e por Fandango, capataz da estância do Angico. O primeiro cativa pelo olhar estrangeiro com o qual acompanha e analisa as comédias e tragédias de Santa Fé; o segundo por sua sabedoria  popular, seus causos e ditos, talvez mais verdadeiros que muitos axiomas da ciência. Ambos foram professores, cada um a sua maneira, do jovem Licurgo Cambará, personagem fundamental no segmento d'O sobrado.

Não tenho a pretensão nem a competência necessária para analisar em detalhes a obra de Erico Veríssimo. Apresento aqui a opinião de um leitor que, por pura ignorância, só recentemente dedicou-se a conhecer em maior profundidade o trabalho do romancista.

A experiência de ler Veríssimo esclareceu para mim o motivo de tamanha - e merecida - reverência ao escritor. Reconheço agora o talento e a relevância deste conterrâneo. Todavia, não sejamos ingênuos! Nossos "heróis" são escolhidos e com Erico Veríssimo não foi diferente. Algumas cidades escolhem ser a terra do milho, ou a terra do Papai Noel, ou a capital das missões. Poderíamos ser a terra de Firmino de Paula, a terra de Pinheiro Machado, a terra de Zé da Silva (já fomos a "cidade dos buracos", devido à fama de nossos asfaltos tempos atrás...). Em algum momento, escolheu-se que esta seria a terra de Erico Veríssimo, e isso obviamente se refere a um tipo de imagem que a cidade quer representar de si mesma; à possibilidade de atrair turistas não só ao museu, mas ao nosso comércio, etc... Associar a imagem da cidade a um de seus mais conhecidos cidadãos, escritor de fama internacional, traz benefícios econômicos, sociais, políticos... 

Interesses diversos permeiam a representação de passado que uma cidade faz e, como dizem, "são os vencedores que escrevem a história". Aqueles cujos nomes são dados à praças, ruas ou escolas são escolhidos por algum motivo. Não são representantes naturais de nosso passado; foram colocados nesta posição. Posso não saber quem foram Pinheiro Machado, Venâncio Aires, Margarida Pardelhas, Annes Dias, General Osório e tantos outros nomes que vejo pelas ruas de Cruz Alta, mas o fato de ter que conhecer estes nomes para me localizar espacialmente garante que eles permaneçam entre nós, que sejam lembrados. E desse modo, parecem ser os únicos personagens importantes de história cruzaltense, quando não são. Não me entendam mal, não estou advogando a negação ou o esquecimento destes personagens. Tiveram certamente papel importante na história da cidade e merecem ser estudados e lembrados. Contudo, um pouco de senso crítico não faz mal a ninguém. Por que apenas eles? Militares de alta patente podem ter pensado as estratégias de combate, mas foram quase sempre os peões, lavradores e escravos que mataram e morreram nas guerras. As decisões políticas ditaram os rumos da economia e da sociedade, mas foi no cotidiano, no ordinário, na prática social, que estes rumos adquiriram forma e substância. Uma famosa professora só pode assim ser reconhecida por ter tido papel importante da vida de seus alunos. Ninguém faz nada sozinho.

O passado passou (óbvio!), e não tem existência concreta. Tudo que temos são documentos, objetos, fotos... vestígios, ou seja, fragmentos do passado que sobrevivem no presente. Historiadores e arqueólogos utilizam-se destas fontes, selecionam, organizam, esquematizam, e por um exercício intelectual preenchem as lacunas. E neste sentido, a história não é descoberta. É criada.

Contudo, se Cruz Alta tem que ser a terra de alguém, Erico Veríssimo é, afinal, uma boa escolha...

REFERÊNCIAS
CHAVES, Flávio Loureiro. História e literatura. Porto Alegre: Ed. Universidade-UFRGS, 1999.
VERÍSSIMO, Erico. O tempo e o vento - O continente I. São Paulo: Globo, 2000.
VERÍSSIMO, Erico. O tempo e o vento - O continente II. São Paulo: Globo, 2000.
VERÍSSIMO, Erico. Solo de clarineta I. Porto Alegre: Editora Globo, 1980.