quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Oficina de arqueologia no II Seminário sobre Preservação do Patrimônio Cultural na UNICRUZ


Oficina de arqueologia na universidade de Cruz Alta no dia 05/11/2015 às 14:00 horas.

Oficina 3 - Arqueologia da Arquitetura
Ministrantes: Jonathan Santos Caino e Thaissa de Castro Almeida Caino.

O curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Cruz Alta irá promover, nos dias 05, 06 e 07 de novembro, o II Seminário sobre Preservação do Patrimônio Cultural - Construindo uma política integrada de salvaguarda.  O evento busca estabelecer diálogo entre Unicruz, sociedade civil, poder público municipal e Ministério Público.


Clique aqui para saber mais sobre o II Seminário sobre Preservação do Patrimônio





quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Parabéns Cruz Alta

Em junho de 1821 um grupo de moradores de um pequeno povoado emitiu um documento solicitando autorização para a construção de uma capela, necessária para a administração dos sacramentos. Em 18 de agosto do mesmo ano, exatos 190 anos atrás, o Comandante de Armas da Fronteira emitiu outro documento, autorizando a construção da capela e estabelecendo as regras para o traçado urbano da vila, o que viria a acontecer somente em 1825. Isso porque havia por aqui a "incômoda presença dos bugres", que hostilizaram nossos bravos primeiros povoadores. (Curiosa inversão de valores essa, onde aqueles que viviam nessas terras há séculos são os hostis. Mas foi assim que nos contaram, sigamos a corrente). Desde então os "selvagens hostis" foram rechaçados e a cidade cresceu; escravos foram castigados - alguns enforcados - na atual praça da matriz, lavradores e posseiros pobres foram expropriados e expulsos de suas terras quando a lei de terras permitiu que os grandes estancieiros - detentores da grana - comprassem e legitimassem a posse de áreas que nem sempre eram de fato suas, e trabalhadores pobres da Capoeira e do Barro Preto foram tratados como vagabundos, bêbados, criminosos, por seus contemporâneos republicanos que deixaram suas marcas na belíssima arquitetura histórica de nossa cidade.

190 anos de uma linda história.

Comemoremos os feitos dos heroicos tropeiros que fundaram nossa vila, lembremos de João José de Barros, Vidal do Pilar, Pinheiro Machado, Firmino de Paula...

E que haja muita festa na praça do degolador, afinal não podemos esquecer do nosso passado, certo?

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Para saber um pouco mais da história de Cruz Alta

Hoje, um post de divulgação. Nosso amigo Fabrício Renner de Moura - autor do excelente texto publicado aqui sobre o cotidiano do boleeiro Antônio Rocha na Cruz Alta do início do século XX  -  começa agora uma empreitada na internet para discutir a historiografia de Cruz Alta e região. Àqueles que tenham interesse, segue o link.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Experiência e cotidiano de um jovem boleeiro na Cruz Alta republicana.


Fabrício Renner de Moura

O presente texto faz uma breve incursão na vida pública e privada de Antônio Rocha, homem simples, boleeiro, cruzaltense e morador no subúrbio de Cruz Alta na década de 20 do século passado. Aos olhos da cultura letrada, Antônio é uma testemunha perturbadora, pois revela uma outra História urbana de Cruz Alta, não tão prospera e dinâmica como estamos acostumados a constatar.
Através da voz de Antônio e das vozes de seus companheiros de trabalho, percebemos a luta cotidiana, improvisação e resistência, diante da nova ordem de produção, de dominação e de poder que se estabelecia, inserindo os trabalhadores pobres a um sistema de trabalho com baixos salários e sem os mínimos direitos sociais e políticos, e ainda, uma voraz rede de vigilância policial e judiciária.
Nas palavras de Ecléia Bossi, quando a História da gente comum chega até nós ela arrepia[1], sem dúvida por trazer à tona os preconceitos, as perseguições e os sofrimentos que desclassificavam-nos socialmente, como, por exemplo, a condição de trabalhador manual e diarista, a organização familiar que se distinguia dos modelos instituídos por médicos, psicólogos, pedagogos e advogados, e, as condições de moradia localizadas nas áreas alagadas e mal cheirosas da cidade.
Portanto, mesmo que essas vozes tragam os dramas vividos no submundo do espaço urbano de Cruz Alta, é através destas que entenderemos a rotina dos conflitos, confrontos e solidariedades tecidos no imediatismo do cotidiano cruzaltense, e, assim revistar e refazer as verdades históricas, então vistas como estáticas e rígidas[2].  
         Antonio Rocha era um jovem boleeiro (profissão semelhante ao de taxista) residente na cidade de Cruz Alta nas primeiras décadas da República. Seu local de trabalho situava-se na praça Itararé, em frente ao prédio da movimentada estação ferroviária. Com um carro alugado ( dois cavalos e uma carroça), nosso boleeiro transportava passageiros e cargas por todos os cantos, e possivelmente estava a par de fofocas, intrigas e noticiais que corriam pela cidade, assim como, muitas historias particulares regadas por esperanças e desilusões. Assim, nestas estas idas e vindas, acabou formando com os usuários uma rede de relações e alguns poucos trocados.
         Trabalhador diarista, Antônio não possuía um salário fixo e ainda convivia com os constantes calotes de muitos clientes. A renda obtida nas longas horas de trabalho, mal garantia o sustento de sua família, como o alimento básico (açúcar, pão e carne) e o aluguel de uma pequena casa no bairro Barro Preto, subúrbio da cidade conhecido por suas casas de prostituição e suas agitadas tabernas.
         Nas horas em que não trabalhava, a diversão noturna estava próximo de sua casa, na rua Procópio Gomes número noventa e dois. Ali localizava-se o prostíbulo de Carolina e suas provocativas meretrizes. Com a companhia de uma rapariga e de algumas doses de trago, Antonio arriscava a sorte nos jogos de cartas e de ossos com os jovens filhos da elite local já bastante embriagados.
A promiscuidade era tanta, que certa vez o capitão Dinarte Vargas, homem de confiança do firminismo, e seus soldados da guarda municipal, tentaram fechar o estabelecimento para por fim aos atos praticados na casa e quase viraram uma peneira. Um intenso tiroteio entre os guardas e os freqüentadores do estabelecimento, rompeu com o silêncio da noite, não havendo alternativa para os homens da lei senão recuar as pressas para a intendência velha a poucas quadras do bairro.
Durante o dia, principalmente nos finais de semana, Antonio reunia-se com seus amigos e pela estrada de ferro Cruz Alta-Ijuí cortavam caminho até o recém inaugurado prado nos arredores do cemitério público municipal. Ambiente de muita competição e confraternização, estas corridas reuniam centenas de pessoas apaixonadas pelos velozes cavalos que rendiam uns bons trocados e uma vida social ativa. Antonio não agia diferente, apostava os tostões que tinha e aos berros proferia estímulos e palavrões ao jóquei e ao cavalo. As vezes a sorte estava do seu lado.
A dona Alicia, mãe de Antonio, advertia o filho sobre os perigos destas diversões. O receio dela era a violência que a farra, a prostituição, a jogatina e o álcool poderiam gerar, assim como possíveis problemas com a guarda de Firmino Filho que não costumava brincar em serviço, pois espancava e encarcerava na cadeia pública farristas, mendigos, crianças pedintes e bêbados que perambulavam pelas ruas. 
Alicia preocupava-se com seu filho mais velho e com as influencias dos seus amigos. Sem marido, algo imoral na época, e com mais duas filhas menores para educar, a ajuda de Antonio no sustento e no cuidado da família era fundamental e, assim, exigia do filho mais responsabilidade. Seu trabalho como lavadeira, cozinheira e faxineira em uma pensão para jovens militares do exército brasileiro, nas proximidades do quartel do 6° RAM., era cansativo e pouco remunerado, mas também era um local onde laços de amizade e de solidariedade eram formados para vencer a pobreza.
 Bem avisado por sua mãe Alícia e ciente das obrigações de homem da casa, Antonio cedo da manhã do dia vinte de junho de 1925 desloca-se vagarosamente até a praça Itararé. No caminho cruzava por leiteiros, padeiros, lenhadores, marceneiros, pedreiros, açougueiros, feirantes, barbeiros, alfaiates, comerciários, bancários, ferroviários, professores, advogados, médicos e empresários apressados pelas ruas empoeiradas e fedidas para iniciar mais um dia de muito trabalho.
 Aproximando-se da estação ferroviária, Antonio percebeu que o movimento de pessoas estava maior do que o habitual. Nos arredores da praça, as diligencias estavam paradas e os cavalos encarangados diante do forte frio matinal. No centro do logradouro público, os colegas cocheiros conversavam e gesticulavam com veemência diante do jornal do dia.
Antonio, sem saber ler e escrever, apressou-se ao encontro dos cocheiros a fim de saber o motivo do tumulto, e atentamente ouviu dos companheiros Francisco Dias, Manoel Rodrigues, Arrago de Valério, Antonio Figueiredo, Antonio Riolon, Juvêncio Soares, Nobre Adão, Felipe Mozhes, Quintino Vasconcellos e Saturnino da Silva, estes nervosos e revoltados, as palavras ofensivas editadas pelo jornal local o Commercio
A indignação dos boleeiros justificava-se. Na página quatro do espaço denominado Scenas d’aqui, as condições de trabalho e o modo como comportavam-se eram severamente questionados. Sem autoria, mas ocupando uma posição privilegiada no contexto da página, as idéias tecidas no texto não se distanciam da opinião do periódico e de grupos sociais abastados do município quanto a presença e o comportamento da população pobre nos espaços públicos da cidade.
 Constituída de sessenta e duas linhas, o texto segue o estilo jornalístico da época no Brasil, usando referencias teóricas cientificistas e biológicas preconceituosas[3], atribuindo qualidades degenerativas e racistas ao modo de vida e de trabalho dos boleeiros, acusando-os de relaxamento, ausência de comodidade e de bem-estar ao forasteiro que visitar esta Cruz Alta leal e valorosa
Ao longo do texto, são relatadas as condições das carruagens com seus bancos quebrados e sujos, puxados por matungos magros, fracos e sarnentos. A irregularidade na manutenção das rodas e dos arreios, assim como, o comportamento dos cocheiros que através de berros, gritos e socos buscavam a preferência do cliente, também eram descritos com indignação, ainda mais que o palco destas relações davam-se nos cartões postais da cidade, a praça Itararé e a estação ferroviária.
Cabe aqui destacar, que as redações dos jornais eram espaços de confluências de mentalidades na passagem do século XIX para o XX[4], nesse reduto das letras, calorosas discussões e debates sobre projetos políticos da intelectualidade cruzaltense ocorriam e suas impressões sobre o mundo e o ambiente urbano de Cruz Alta formavam as páginas semanais do O Commercio e do O Cruz Alta.
 Assim, com a chegada da ferrovia à cidade, em novembro de 1894, estancieiros, comerciantes, médicos, professores, advogados, políticos e intelectuais, pressionavam a intendência municipal para realizar uma série de reformas urbanas no centro de Cruz Alta. Portanto, abrir avenidas, empedrar as ruas centrais, arborizar as praças, instalar redes de água encanada, de esgoto, de energia elétrica e de telefonia, e, limpar do centro mendigos, prostitutas e vadios representavam a modernização dos espaços públicos da cidade e a reprodução de valores morais burgueses.
Em sintonia com as grandes, médias e pequenas cidades européias e norte-americanas, a intelligensia cruz-altense acreditava nos benefícios produzidos pela era da ciência e das máquinas, até porque, o impacto da operação do transporte ferroviário e da substituição da luminosidade dos candelabros de óleo de querosene, pela luz elétrica, fora sentido positivamente no dia-a-dia da população.
Eufóricas, as famílias de bens da cidade desejavam construir um espaço afrancesado no centro da cidade, na qual, a rua do Commercio passaria a ser o símbolo desse processo, tanto que recebeu as primeiras reformas urbanas, principalmente o trecho entre as praças Itararé e Matriz. Por conhecidência, é nesta rua e nas travessas (ruas Mariz e Barros, Gal. Osório, Maurity, João Manoel, Andrade Neves, Gal. Pillar, Sete de Setembro e Coronel Martins) que localizavam-se os espaços de convívio (o teatro Carlos Gomes, o Cine teatro Biógrafo Ideal, as redações dos jornais, o Centro Republicano, a Intendência municipal, os clubes do Comercio e do Arranca, e as luxuosas casas comerciais), de trabalho e de domicilio das elites cruz-altenses.  
Diante disso, as elites letradas desejavam limitar o trânsito da população pobre pelas ruas modelos da cidade, controlando o vai e vem de muita gente (vendedores ambulantes e meninos pedintes, jogadores e sapateiros, prostitutas e oleiros, vagabundos e lavadeiras, milicos e golpistas, carpinteiros e pedreiros, farristas e mendigos), que diariamente reproduziam comportamentos e costumes dispares aos novos tempos.
Tão logo iniciou-se a construção do espaço elitizado, a intelectualidade cruzaltense voltou seus olhos para os boleeiros, mensageiros e cocheiros e demais condutores de carroças e de carretas que percorriam todos os espaços da cidade, inclusive as ruas afrancesadas do centro, principalmente a rua do Commercio.
Há muito tempo, os ilustrados tinham interesse em limitar o acesso deste transporte e de seus condutores ao centro, e assim, solicitavam à intendência um controle mais rigoroso das carroças, que além de pesados e sem molas, prejudicará o calçamento, que ficará danificado[5]. O valor simbólico também fazia-se presente nas exigências, pois este transporte lembrava os tempos coloniais, incompatível com o cenário moderno que a passos lentos se desenvolvia.
Entretanto, mal sabiam os grupos sociais dominantes que esquecer o passado é impossível, mesmo quando medidas repressivas são adotadas para eliminar os costumes coletivos e individuais considerados velhos[6]. A intendência, por exemplo, utilizava as carruagens para recolher os lixos e demais dejetos fabricados pela população, assim como, outros carroceiros transportavam todos os tipos de cargas: madeiras, alimentos, animais e entulhos. Ou seja, tanto os cocheiros, quanto os carroceiros e carreteiros são de suma importância para o funcionamento do comércio e dos serviços públicos e particulares de Cruz Alta.  
Antonio e seus companheiros não se deixaram abater. Depois do momento de fúria, com muitos palavrões, xingamentos e ameaças, era hora de voltar ao trabalho e enfrentar os modernos através da força das palavras. No dia dois de julho, doze trabalhadores da boléia, inclusive Antonio Rocha, publicaram na página sete do jornal O Commercio, o texto intitulado A verdade com o propósito de responder os insultos ao público e aos trabalhadores desta humilde sidade.
Antes, cabe fazer algumas considerações a respeito do texto. Tudo indica que esse manifesto fora elaborado pelos próprios trabalhadores, não apenas por ter sido reconhecido em cartório, o que supostamente dificultou a manipulação de seu conteúdo pela redação do jornal, mas pela grafia e o vocabulário usado pelos mesmos em um veículo de comunicação de linguagem formal e com um público alvo definido.
Essa maneira particular de jogar com as palavras em um reduto exclusivo do discurso dominante, trouxe a possibilidade de entender a formulação de expressões lingüísticas desse grupo social, na qual aqui entendemos como estratégia de afirmação, assim como uma possibilidade de conhecer a percepção dos próprios trabalhadores como sujeitos sociais e o que sentiam diante das perseguições das classes cultas em um contexto de mudanças na cidade.  
Sem poupar adjetivos ao autor do artigo do dia 20 de junho, os cocheiros já no inicio do texto acusam-no de insultador e de grosseiro por ter publicado um artigo escandaloso, pois são pobres e esmeram-se para ganhar o pão honesto.
A resposta às acusações buscou desfazer a imagem negativa que havia sobre a categoria, trazendo para a comunidade local e, quiçá regional o outro lado do dia-a-dia do trabalho dos boleeiros, até então, ocultados pela imprensa. Defenderam três aspectos, a viabilidade econômica da atividade, a responsabilidade com o trabalho que resulta numa conduta social compatível com as convenções capitalistas, e , o respeito da sociedade pela categoria.
Os boleeiros trataram de ressaltar as boas contas que geravam ao patrão, exaltando a lucratividade de um transporte de suma importância para as relações comerciais da cidade. Diante disso, não permitiam ser retratados como borradores das tavernas, e sim como trabalhadores honestos e habituados aos rigores do trabalho, já que não geravam dispêndios.
A apropriação por parte dos boleeiros a ideologia do trabalho possivelmente serviu para passar uma imagem de boa conduta, mas também significou a integração numa sociedade que desde a Proclamação da República vinha reproduzindo, sobre pressão política, os valores do capital. Afinal, como ressaltou Chalhoub, foi com o regime republicano que o homem livre, o imigrante e o ex-escravo foram transformados em trabalhador assalariado[7].  
No entanto, admitem que nem todos trabalhadores eram caprichosos, assim como também não condenam os companheiros que não seguiam os modelos burgueses. Atribuem a falta de asseio e de estrutura das carruagens aos muitos passageiros que não pagavam a corrida ao pobre bolieiro que com sacrifício lhe conduz ao médico, ou conduz o médico para salvar seu filhinho.
 Desta forma, exercer com decência a profissão era cada vez mais difícil já que os custos dos equipamentos, como a manutenção do veículo e o alimento para os animais eram elevados.
Esse argumento chocava-se com as ideias burguesas reproduzidas nos periódicos da cidade. Para os trabalhadores, a condição econômica determinava as dificuldades de trabalho da categoria, enquanto que para os setores endinheirados o vinculo alcoolismo, indecência e desobediência civil valia para explicar as atuais condições que a categoria encontrava-se, e se fosse preciso  suprimi-la do cotidiano da cidade. Por fim, queriam ser respeitados, pela sociedade como pelas autoridades, tanto que (...) viemos unânime representar contra a selvagem inçulta.
Mas o que acontecera com Antônio após o manifesto publicado no jornal? Algo mudou em sua vida? 
As agressões verbais e morais por parte das instituições do Estado prosseguiram. Como observamos, na República Velha a população pobre enfrentou um período de repulsa e de perseguições dos aparatos policial e judiciário, assim como, de setores produtivos, ambos com objetivo de suprimi-los da sociedade sadia e higienizada.
Diante disso, mesmo com as perseguições e as dificuldades econômicas, Antônio prosseguiu sua vida elaborando estratégias para burlar a pobreza e sobreviver. Residindo em uma casa alugada com a mãe Alicia e as duas irmãs, Clara e Natália, a primeira com dezesseis anos e a última menor de dez anos, Antônio tratou de aumentar a renda familiar e passou a trabalhar nas horas que não atuava na boleia na casa comercial de Júlio Gruhn, localizado nos taquarais da alagada rua Aurora.
O seu Gruhn como era chamado no barro preto, era um senhor de meia idade, estatura baixa, gorducho com um rosto arredondado e salpicado. Tinha a mania de morder um pequeno pedaço de madeira, semelhante a um palito, e, no ombro direito carregava um pequeno pano encardido para limpar qualquer sujeira que via na sua frente. Não possuía arma de fogo, ao menos era o que se comentava, mas debaixo de seu balcão havia um conhecido facão usado para intimidar os caloteiros e os brigões freqüentadores da casa.
A casa vendia de tudo, desde gêneros alimentícios como farinha, arroz, açúcar, feijão, banha e produtos vindos das colônias, a ferramentas e matérias de couro para montaria. No entanto, o novo emprego não agradou a família do jovem boleeiro. Alicia sabia da reputação da venda, pois no local também comercializavam-se bebidas alcoólicas, promoviam-se jogos de roleta e de cartas durante o dia e a noite e ocorriam encontros amorosos as escondidas. Além disso, Julio Gruhn costumava comprar produtos roubados por menores abandonados das lojas do centro e dos armazéns e trens da estação ferroviária. 
Antônio encarregava-se de atender os clientes e de entregar encomendas a domicílio na cidade e no interior do município. Com a carreta abarrotada de mercadorias, percorria as ruas empedradas e esburacadas da cidade para entregar as encomendas. Também eram seguidas as viagens até os distantes povoados de Santa Bárbara, Três Capões, Porongos, Jary com suas estradas tortuosas e sujeitas as investidas dos assaltantes.
Mas, não havia outra saída. Morador de um bairro hostilizado pela comunidade “culta” da cidade, pobre e ainda sem conhecer alguém que trabalhasse nas casas ou nos estabelecimentos comerciais de políticos e empresários, Antônio dificilmente encontraria emprego nos bazares, nos cafés e nos cine-teatros da cidade.
Enquanto isso, dona Alicia prosseguia trabalhando na pensão para militares. Temerosa com os assaltos no bairro, e com Antonio na maioria das vezes fora de casa, Alicia passou a levar suas duas filhas para o trabalho graças o consentimento de sua patroa, dona Norma, que transformou sua casa em pensão após a chegada do Regimento de Artilharia. Do amanhecer ao anoitecer, jovens militares oriundos de todo os cantos do país entravam e saiam da pensão para alimentarem-se ou para entregar as trouxas de roupas a serem lavadas.
As meninas, Clara e Natália, sob o olhar atento da mãe, ajudavam no serviço com trabalhos leves, mas no interior da pensão. Ajudavam a limpar os utensílios domésticos e a estender a infinidade de roupas dos rapazes. Raramente apareciam aos olhos de praças e oficiais do exército, conhecidos na cidade pelas farras. Quando entravam na sala, as meninas logo tratavam de sair do recinto intimidadas e embaraçadas devido os olhares dos praças que não perdiam a oportunidade de soltar alguns gracejos.
Numa dessas olhadas, o terceiro sargento Guilherme Massaro, natural de Bom Principio, recém saído de um orfanato em Montenegro interessou-se por Clara. Com vinte quatro anos de idade, o jovem sargento, órfão de mãe desde os seis anos, e então separado dos três irmãos, alistou-se no Regimento de Artilharia de São Leopoldo como soldado transferindo-se já como terceiro sargento para Cruz Alta.
Sem parentes e amigos, Guilherme praticamente residia no 6º Regimento e com o passar do tempo formou sua rede de amizades com companheiros de farda oriundos das colônias de Gal.Osório(hoje a cidade de Ibirubá), Neu-Wurtemberg (hoje Panambi) e de outras cidades do país Natal, Mogi-Mirim, Lapa, Lages. Fora da caserna, Guilherme freqüentava tabernas e pensões do bairro, na qual conheceu a pensão de dona Norma e a família de Alicia. Desse convívio resultou seu interesse pela jovem Clara.
Em pouco tempo casaram-se, e com o consentimento de Alicia e de Antônio passaram a morar na casa da família Rocha. Entre breves discussões, em principio pelo pouco espaço numa casa sem cômodos e o único banheiro localizado nos fundos do quintal, e, manifestos solidários, com o tempo Antonio e Guilherme tornaram-se grandes amigos.
A ajuda de Guilherme seria fundamental para Antônio vencer o vírus da gripe, contraído nas idas e vindas pelos campos do interior, quebrando geada ou no frio do entardecer,e, as vezes dormindo na estrada coberto com poucos trapos. Antônio com febre alta e alucinações fora transportado as pressas até a farmácia Peixoto, mas precisou ser atendido no único hospital da cidade São Vicente de Paula, e por lá ficou isolado durante uma semana com outros doentes em um pavilhão frio e sem receber visitas, conforme a ordem do médico Franklin Veríssimo.
 Alicia desesperada não desgrudava de seu oratório repleto de rosários e  imagens de santos católicos como São Francisco de Assis, Santo Antônio, Santa Catarina e a imagem do Divino Espírito Santo abençoada pelo padre da Catedral José Spoenhlein, muito querido na comunidade. Clara e Natália, além de rezarem por horas o terço e prometerem sua alma para que o irmão se salvasse, caminhavam pelos terreiros de umbanda espalhados nos subúrbios da cidade.
Um deles localizava-se nas margens da estrada de ferro para Passo Fundo, muito procurado por pessoas simples e abastadas da cidade. A mãe Joaquina, descendente de escravos com seu conhecido vestido branco e um fino cigarro importado da sans-autout entre os dedos, presente de algum agradecido, ciente da doença de Antonio pediu uma tigela com pipocas, erva barba de boi e peças de roupas de cores preta, vermelha e branca para oferecer ao orixá obaluiaê, divindade que rege as doenças.
Transitando entre a ciência médica e elaborando um rico sincretismo religioso, após um mês de agonia Antônio sente-se bem. Debilitado fisicamente pela doença, o seu retorno ao trabalho é demorado e os poucos trocados dos dois empregos que possui fazem muita falta. Nesse ínterim, sua mãe conheceu o maquinista de trens Justino Rosa, natural de Santa Maria e já há alguns anos em Cruz Alta. Alicia perdera seu marido, vítima de assassinato em um dos meretrícios da Capoeira, região oeste da cidade, quando Antonio tinha cinco anos de idade. Desde então, não se relacionara com ninguém, até conhecer Justino que freqüentava diariamente uma cancha de bocha de fronte a sua casa.
De certa forma, com a presença de Justino no seio da família Rocha, a situação financeira modificou. O maquinista, mesmo com pouco ordenado passou a ajudar no sustento da casa e mesmo na educação da jovem Natália matriculando-a em cursos de corte e costura oferecidos na recém inaugurada Cooperativa dos Ferroviários, mais tarde no Colégio de freiras Santíssima Trindade.
     Antônio, seus companheiros de trabalho e sua família sabiam que tinham que enfrentar uma opinião publica embebecida pela modernidade e convencida que os maiores entraves para o progresso da nação estavam situados nos bairros alagados onde ninguém queria morar.  E numa tentativa, talvez desesperada, os boleeiros de Cruz Alta desafiaram os obstáculos da língua culta e penetraram num território dos intelectuais do poder não somente para responder a uma provocação, mas para revelar as dificuldades de quem não tinha condições de comprar uma cesta básica (arroz, feijão, açúcar, sal, banha) que custava sessenta mil reis.
A despeito de uma estrutura que vigiava e desconsiderava as dificuldades da vida da gente comum, a solidariedade entre familiares e amigos fora a melhor estratégia para burlar tamanha miséria. Experiências que trouxeram à tona imagens desconhecidas da Cruz Alta Paris das missões, no entanto, reveladoras de uma identidade em comum desenhada cotidianamente por pessoas de carne e osso, como disse Thompson, sujeitos que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida “tratam” essa experiência em sua consciência e sua cultura[8].


                                             





[1] BOSSI, Ecléia. As outras testemunhas. p. 04. In: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984.
[2] BOSCHI, Caio César. Por que estudar História? São Paulo: Ed. Ática, 2007. p. 29.
[3] GUIMARÃES, Valéria. Os dramas da cidade nos jornais de São Paulo na passagem para o século XX. Revista Brasileira de História, v. 27, n. 53, São Paulo, 2007. p. 02.
[4] MORAES, Adriana dos Santos. Em novela de 1897, uma imagem da cidade em direção da modernidade Estrychnina: na Porto Alegre do final do século XIX, e o moderno se envergonha de desejo. Dissertação de mestrado na PUCRS, 2006.
[5] O CRUZ ALTA, 22 de outubro de 1908. p. 02.
[6] HABERMAS, Jürgem. Modernidade versus pós-modernidade. Texto apresentado pelo autor durante a entrega do prêmio Theodor W. Adorno, Frankfurt, setembro de 1980.
[7] CHALHOUB, Sidnei. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2 ed. Campinas, SP: Editora de Unicamp.  p.46
[8] THOMPSON, E.P.  A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.  p. 182

quinta-feira, 2 de junho de 2011

A engenharia da terra

Estive fazendo um trabalho de contrato nos últimos dias, em Rio Grande. Tive a oportunidade de encontrar um cerrito:


Para uma melhor explicação do que seria, indico o blog do colega e amigo Marlon Borges Pestana:

sábado, 14 de maio de 2011

Arqueologia de contrato, ou por que um arqueólogo abandona seu blog

O blog anda parado, eu sei, e peço desculpas àqueles que acompanham o nosso trabalho. Começamos com um post em conjunto e, desde então, temos revezado, ora eu, ora o Fernando, com postagens sobre o andamento de nossas pesquisas. Afora algumas pequenas postagens que independem desse revezamento, essa tem sido a nossa lógica de trabalho aqui no blog. Como o último post foi do Fernando, sobre sistemas de assentamento e as hipóteses para a ocupação pré-colonial dessa área que hoje chamamos Cruz Alta, o próximo texto arqueológico seria meu, e de fato deveria ter sido escrito e postado há muito tempo atrás. Não foi por mal, juro.

Hoje eu retomo a atividade no blog, embora ainda não seja pra falar de arqueologia histórica, tampouco da falada "Cruz Alta arqueológica". Contudo, é um tema que tem tudo a ver com aquilo que propomos para a cidade, e ao fim do texto espero que vocês também percebam a relação.

O fato é que há um motivo bem claro e simples para eu não ter escrito nada no blog nos últimos vinte dias: dinheiro. Como quase todo mundo, não sou rico e não posso me dar ao luxo de apenas estudar. Preciso trabalhar. Mas... aonde exatamente trabalha um arqueólogo? Muitos trabalham em universidades, como docentes e pesquisadores; mas outros - a grande maioria - trabalham em outro ramo, comumente chamado arqueologia de contrato.

Não entrarei em detalhes - acho que não é o caso - mas desde meados dos anos 80 a arqueologia está inserida nos estudos de impacto ambiental, isso em âmbito federal. Os grandes empreendimentos (rodovias, ferrovias, usinas hidrelétricas, complexos industriais, etc) só se concretizam mediante licenciamento ambiental; precisam financiar estudos de impacto ambiental e agir de acordo com a legislação vigente para obter as licenças para construir e funcionar. Contratam então empresas, ongs, ou universidades que realizem os estudos necessários. E sendo os bens arqueológicos tidos como patrimônio da união, sua preservação é de interesse do Estado, que embora não contenha a destruição, mitigue as perdas com a legislação. No caso específico da arqueologia, empresas de consultoria científica são contratadas para realizar: diagnósticos, verificar o potencial da área; prospecções, busca por vestígios de ocupação humana que caracterizem um sítio arqueológico; e quando idenficados os sítios, fazemos o resgate, ou salvamento, ou seja, a escavação propriamente dita, escavada com cuidado, com controle, com registro, para que se possa estudar o acervo de cultura material daí proveniente, associado ao registro feito em campo, das plantas baixas e desenhos de perfis estratigráficos, etc... e claro, o próprio arqueologo, que usa de modelos teóricos e metodológicos para compreender e tratar os dados. Enfim, estes estudos são tornados relatórios entregues às empresas contratantes e ao Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que o analisa e dá - ou não - a licença. Muitos viram dissertações de mestrado e teses de doutorado também. Enfim, muitas empresas fazem isso de boa vontade, outras gostariam de mandar o licenciamento ambiental à PQP, mas não interessa. É isso ou multa.

Enfim, calhou que eu fui chamado pra um trabalho, e como precisava de dinheiro, vim para Imperatriz, no sul do Maranhão, para trabalhar no resgate de um sítio arqueológico pré-histórico. Nesse caso especificamente, a obra já encontrava-se em andamento. Em boa parte do terreno a vegetação já havia sido suprimida e os morros terraplanados. Apenas a área em que trabalhávamos estava preservada, exatamente porque tendo sido identificado o sítio arqueológico, a empresa só pode atuar na área após efetuado o estudo, e o relatório entregue e aprovado pelo IPHAN. Quando isso ocorrer, vai tudo abaixo... árvores, o morro inteiro! Se há um porém neste trabalho, é a tristeza de ver as máquinas arrasando tudo...

E acreditem, escavar sob o sol quente e o clima abafado de Imperatriz não é nada fácil.




Bem, e o que isso tem a ver com Cruz Alta, que afinal está no título do blog? Nada, em um primeiro olhar. Mas por outro lado, o que eu quero destacar é a inserção da arqueologia nos estudos de impacto ambiental em âmbito federal, o que acontece também em muitos estados e municípios. A questão é que a lei federal abrange áreas grandes, ao passo que em geral no meio urbano os lotes são menores, e a lei não se aplica. Nestes casos, é o município que legisla. Porto Alegre, por exemplo, tem uma arqueóloga em seu quadro funcional, e um programa já tradicional de arqueologia urbana. Santo Ângelo, vizinho à nossa cidade, conta também com uma arqueóloga na prefeitura, que leva a cabo estudos arqueológicos prévios a novas edificações na cidade.

Cruz Alta ainda não acordou para isso; talvez ainda demore. (Num município onde se declaram a plenos pulmões o passado e os feitos históricos, que tem dois museus mas nenhum muséologo - profissional que poderia facilitar a entrada de recursos para resolver os diversos problemas de nossos museus por meio de leis de incentivo à cultura, por exemplo - há algo muito errado com as políticas culturais. No mínimo, desinteresse).

domingo, 24 de abril de 2011

Cruz Alta Arqueológica no Diário Serrano

Pois é, hoje o caderno Especial Domingo, do Diário Serrano, publicou uma matéria sobre nossas pesquisas na cidade. Antes de tudo, agradecemos ao jornal pelo espaço, que foi de fato bem maior do que imaginávamos. Houve apenas uma pequena confusão, e aproveito aqui para corrigi-la. Na foto na parte superior da página 2 do caderno, estamos eu e o historiador Fabrício Renner de Moura - que estuda a história da cidade - em uma de nossas idas ao arquivo histórico municipal. Fabrício não atua diretamente conosco, mas por termos um interesse acadêmico próximo, dialogamos bastante e fizemos algumas pesquisas em conjunto durante as férias. Na parte inferior da página, aí sim, estamos eu e Fernando Silva de Almeida (de boné preto).