sábado, 14 de maio de 2011

Arqueologia de contrato, ou por que um arqueólogo abandona seu blog

O blog anda parado, eu sei, e peço desculpas àqueles que acompanham o nosso trabalho. Começamos com um post em conjunto e, desde então, temos revezado, ora eu, ora o Fernando, com postagens sobre o andamento de nossas pesquisas. Afora algumas pequenas postagens que independem desse revezamento, essa tem sido a nossa lógica de trabalho aqui no blog. Como o último post foi do Fernando, sobre sistemas de assentamento e as hipóteses para a ocupação pré-colonial dessa área que hoje chamamos Cruz Alta, o próximo texto arqueológico seria meu, e de fato deveria ter sido escrito e postado há muito tempo atrás. Não foi por mal, juro.

Hoje eu retomo a atividade no blog, embora ainda não seja pra falar de arqueologia histórica, tampouco da falada "Cruz Alta arqueológica". Contudo, é um tema que tem tudo a ver com aquilo que propomos para a cidade, e ao fim do texto espero que vocês também percebam a relação.

O fato é que há um motivo bem claro e simples para eu não ter escrito nada no blog nos últimos vinte dias: dinheiro. Como quase todo mundo, não sou rico e não posso me dar ao luxo de apenas estudar. Preciso trabalhar. Mas... aonde exatamente trabalha um arqueólogo? Muitos trabalham em universidades, como docentes e pesquisadores; mas outros - a grande maioria - trabalham em outro ramo, comumente chamado arqueologia de contrato.

Não entrarei em detalhes - acho que não é o caso - mas desde meados dos anos 80 a arqueologia está inserida nos estudos de impacto ambiental, isso em âmbito federal. Os grandes empreendimentos (rodovias, ferrovias, usinas hidrelétricas, complexos industriais, etc) só se concretizam mediante licenciamento ambiental; precisam financiar estudos de impacto ambiental e agir de acordo com a legislação vigente para obter as licenças para construir e funcionar. Contratam então empresas, ongs, ou universidades que realizem os estudos necessários. E sendo os bens arqueológicos tidos como patrimônio da união, sua preservação é de interesse do Estado, que embora não contenha a destruição, mitigue as perdas com a legislação. No caso específico da arqueologia, empresas de consultoria científica são contratadas para realizar: diagnósticos, verificar o potencial da área; prospecções, busca por vestígios de ocupação humana que caracterizem um sítio arqueológico; e quando idenficados os sítios, fazemos o resgate, ou salvamento, ou seja, a escavação propriamente dita, escavada com cuidado, com controle, com registro, para que se possa estudar o acervo de cultura material daí proveniente, associado ao registro feito em campo, das plantas baixas e desenhos de perfis estratigráficos, etc... e claro, o próprio arqueologo, que usa de modelos teóricos e metodológicos para compreender e tratar os dados. Enfim, estes estudos são tornados relatórios entregues às empresas contratantes e ao Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que o analisa e dá - ou não - a licença. Muitos viram dissertações de mestrado e teses de doutorado também. Enfim, muitas empresas fazem isso de boa vontade, outras gostariam de mandar o licenciamento ambiental à PQP, mas não interessa. É isso ou multa.

Enfim, calhou que eu fui chamado pra um trabalho, e como precisava de dinheiro, vim para Imperatriz, no sul do Maranhão, para trabalhar no resgate de um sítio arqueológico pré-histórico. Nesse caso especificamente, a obra já encontrava-se em andamento. Em boa parte do terreno a vegetação já havia sido suprimida e os morros terraplanados. Apenas a área em que trabalhávamos estava preservada, exatamente porque tendo sido identificado o sítio arqueológico, a empresa só pode atuar na área após efetuado o estudo, e o relatório entregue e aprovado pelo IPHAN. Quando isso ocorrer, vai tudo abaixo... árvores, o morro inteiro! Se há um porém neste trabalho, é a tristeza de ver as máquinas arrasando tudo...

E acreditem, escavar sob o sol quente e o clima abafado de Imperatriz não é nada fácil.




Bem, e o que isso tem a ver com Cruz Alta, que afinal está no título do blog? Nada, em um primeiro olhar. Mas por outro lado, o que eu quero destacar é a inserção da arqueologia nos estudos de impacto ambiental em âmbito federal, o que acontece também em muitos estados e municípios. A questão é que a lei federal abrange áreas grandes, ao passo que em geral no meio urbano os lotes são menores, e a lei não se aplica. Nestes casos, é o município que legisla. Porto Alegre, por exemplo, tem uma arqueóloga em seu quadro funcional, e um programa já tradicional de arqueologia urbana. Santo Ângelo, vizinho à nossa cidade, conta também com uma arqueóloga na prefeitura, que leva a cabo estudos arqueológicos prévios a novas edificações na cidade.

Cruz Alta ainda não acordou para isso; talvez ainda demore. (Num município onde se declaram a plenos pulmões o passado e os feitos históricos, que tem dois museus mas nenhum muséologo - profissional que poderia facilitar a entrada de recursos para resolver os diversos problemas de nossos museus por meio de leis de incentivo à cultura, por exemplo - há algo muito errado com as políticas culturais. No mínimo, desinteresse).

Nenhum comentário:

Postar um comentário