Antes de qualquer coisa, desculpem a demora em postar novamente. Ao começarmos o blog, esquecemos da correria de final de semestre nas disciplinas, cursos e trabalhos finais. Embora tenhamos um número ainda pequeno de seguidores, o número de visualizações foi surpreendemente alto (embora tenha receio de que devido ao tamanho exagerado dos nossos posts, nem todos se deem ao trabalho de ler). Todavia as aulas estão acabando e logo retornaremos a Cruz Alta com mais tempo para nossas pesquisas e para o blog.
Mas vamos ao que interessa.
Sendo bastante simplista, posso dizer que arqueólogos estudam coisas. Estas coisas, no entanto, são produto de ação humana. Arqueólogos, portanto, estudam pessoas a partir das coisas que elas produziram e utilizaram. Mas na arqueologia, como em outras ciências, diferentes formas de pensar influenciam o pesquisador e geram diferentes formas de fazer arqueologia. Assim, existem diferentes formas de pensar como pessoas e coisas se relacionam, dependendo das teorias as quais cada um se identifica e se vincula. Em uma destas teorias, se reconhece que pessoas e coisas se fazem mutuamente. E sobre isso é o post de hoje.
Pessoas fazem coisas; isso é fato. Mas e as coisas, fazem pessoas?
Para o antropólogo britânico Daniel Miller (entre outros), sim. Segundo ele, muito do que somos está não dentro de nós, em uma substância ou essência interna; mas fora de nós, nos lugares que frequentamos e nos objetos que utilizamos. Todos aprendemos nas aulas de português que uma frase é composta de um sujeito e um predicado. O sujeito determina de onde parte a ação, e o predicado é tudo aquilo que se diz ou que se declara sobre o sujeito. No predicado há o objeto, que indica aquilo que sofre a ação. Filosoficamente, somos pensados quase sempre nesta mesma lógica: somos sujeitos, agimos. As coisas são objetos, e apenas sofrem a ação; são passivos. Esta visão, contudo, tem sido questionada...
Em um de seus últimos livros publicados no Brasil, o filósofo esloveno Slavoj Žižek fala sobre o que ele chama objeto incômodo, invertendo a lógica a partir dos verbos derivados sujeitar e objetar. Sujeitar é submeter-se, estar sujeito a algo ou alguém. Objetar é criar uma objeção, um obstáculo. Assim, para este filósofo, bem como para o antropólogo Daniel Miller, a materialidade que nos cerca cria obstáculos, e estamos em certa medida sujeitos a ela. A materialidade de uma cidade como Cruz Alta dirige nossos movimentos, os habilita e os constrange. O traçado das ruas, fruto de planejamento e intenção humanas, dirige os movimentos dos habitantes da cidade. Os obriga a caminhar por aqui, e não por ali. Os objetos também têm esse poder. O machado não é apenas a ferramenta com a qual corto uma árvore. Ele é absolutamente fundamental. É ele que me dá a capacidade de cortar a árvore. Ele age, portanto, como um meio de manifestar minha intencionalidade, me habilita a um tipo específico de engajamento com o meio ao meu redor (neste caso, cortar a árvore) que não seria possível sem o machado.
Arqueólogos chamam as coisas que estudam de cultura material. Para Daniel Miller, o termo é útil exatamente porque reconhece que as coisas que nos rodeiam são também parte de quem nós somos. Muitas vezes tendemos a pensar no "eu" como uma essência interna, constante, que de dentro de mim garante que eu sou, e sempre serei eu. Contudo, identidade é algo que se assume, uma construção sempre presente e dependente do contexto em que estamos. É comum ver pessoas que passam a tomar chimarrão e escutar música gaúcha com muito mais frequencia quando vão morar em outro estado, exacerbando seu "gauchismo" em uma tentativa de demonstrar sua identidade em relação ao outro (me ocorre agora que a cuia é um ótimo exemplo... quando trabalhei por um período no Ceará, ao me ver com a cuia na mão todos perguntavam: "você é gaúcho, né?"). Mas a materialidade tem papel importante na nossa identidade em diversos sentidos...
Quando nascemos, somos criados dentro de um pequeno ambiente social, a família. Neste ambiente, observamos o que acontece a nossa volta, aprendemos como andar, como falar... aprendemos também qual a hora de almoçar e a hora de dormir, a roupa para ir a escola e a roupa para ir à missa. O que a materialidade tem a ver com isso? É aqui também que aprendemos como os espaços de uma casa devem ser divididos: que tipos de móveis vão na cozinha e que tipos vão no quarto... Aprendemos que o rosa é cor de meninas e o azul é cor de meninos.Quando crescemos, reproduzimos muitas destas coisas, exatamente porque nos parecem naturais, pois as coisas já eram assim quando nascemos. No entanto estas formas de pensar são construídas historicamente. Quando nascemos, apenas "pegamos o bonde andando." É a partir deste mecanismo que a cultura se reproduz. Uma de minhas sobrinhas, antes de começar a falar (português), já põe telefones celulares na orelha e fala por horas (em uma língua que provavelmente só ela e o interlocutor entendam). Crescendo em um meio onde observa as pessoas ao seu redor falando com aquele objeto apoiado no rosto, ela reproduz a prática e aprende uma maneira específica de se relacionar com essa coisa. Mesmo sem saber falar, ela já sabe o que fazer com o telefone. Afinal, é o que todos ao seu redor fazem: apóiam o aparelho na orelha, e falam.
Embora esteja morando em Pelotas, me identifico como cruzaltense. Mas ser um cidadão de Cruz Alta implica, entre outras coisas, que eu reconheça as ruas da cidade, que eu vivencie suas esquinas, que eu saiba o nome das ruas, enfim... é preciso que eu conheça e experiencie a cidade em seus aspectos materiais. Se sou estudante, uma série de outros objetos vai garantir com que os outros me reconheçam enquanto estudante: mochilas, canetas, cadernos, livros. Os objetos que utilizamos são também parte do que somos. Uma forma de entender isso é imaginar a seguinte situação: entro no quarto de uma pessoa que eu não conheço, e este quarto está cheio de objetos desta pessoa. Prestando atenção nestes objetos, posso conhecer um pouco mais de quem os usa. Roupas sujas espalhadas pelo quarto sugerem que ele não é muito organizado; livros de Dostoiévski, Erico Verissimo e Gabriel Garcia Márquez indicam que gosta de literatura; um cinzeiro cheio me leva a pensar que trata-se de um fumante... Toda prática envolve diferentes formas de engajar-se com a materialidade, seja frequentando um espaço específico ou utilizando diferentes ferramentas. Para ser um pedreiro, preciso estar em construções e dominar o uso das ferramentas e dos materiais de construção. Se sou enfermeiro, roupa branca e um estetoscópio são elementos característicos.
E se fizéssemos esse mesmo tipo de leitura sobre objetos do passado? Instrumentos pré-históricos feitos em pedra lascada, como os já encontrados na área próxima ao campus da Unicruz e nas proximidades do presídio; ou fragmentos de louça e vidro do século 19, como encontramos no terreno hoje ocupado pela sede do Sicredi... Estudar objetos como estes (e muitos outros que podem estar logo abaixo de nossos pés) nos permitiria entender diferentes formas de viver, de engajar-se com a paisagem, de produzir e utilizar objetos... Cruz Alta tem potencial para isso.
Em resumo, o que nos define não é uma essência interna que determina nossos atos. Somos aquilo que fazemos, e baseado naquilo que fazemos os outros também nos definem. Esse fazer envolve, sempre, a materialidade. Disso se conclui que a identidade não é fixa e imutável. Estamos em constante movimento e em constante mudança e, exatamente por isso, os objetos do passado são reivindicados como âncoras para dar coerência a estas identidades sempre problemáticas. Essa é a principal função atribuída ao patrimônio. Mas isso é assunto para outro post...
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