terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Lendo Erico Veríssimo

Flávio Loureiro Chaves diz que


A literatura brasileira sempre registrou as grandes transformações sociais, adquirindo com freqüência um aspecto documentário para trazer ao debate as profundas alterações das forças detentoras do poder econômico e político. Daí porquê, no caso de Érico Veríssimo, a ficção nunca se desvinculou da função de instrumento válido para a interpretação da realidade circundante.
Hoje, gostaria de falar um pouco de como a literatura tem me ajudado a construir um quadro mais completo daquilo que busco na minha pesquisa. Recentemente li "Solo de clarineta", de Erico Veríssimo. Na verdade, o primeiro de dois tomos de uma edição de 1980. Confesso que até então carregava comigo um certo preconceito com o escritor. Nada contra sua obra, afinal não a conhecia diretamente. Contudo, nunca fui afeito às associações do tipo "Cruz Alta: terra de Erico Veríssimo" e isso de certo modo fez com que não tivesse muita vontade de lê-lo.
Tenho tentado compreender a paisagem da cidade; como práticas sociais e interesses individuais ou de grupo, econômicos, sociais e políticos, se articularam na produção e utilização da paisagem urbana e como, pelo processo histórico, tornaram a cidade tal como a conhecemos hoje. E com "cidade" refiro-me exatamente a esse palimpsesto de ruas, casas e pessoas que construíram, habitaram, transformaram e deixaram suas marcas nestas ruas, casas, edifícios e praças de Cruz Alta. As vidas e práticas sociais que tiveram lugar nos primeiros anos da cidade se perderam, mas muitos vestígios materiais destas vidas e práticas permanecem entre nós.
Para fundamentar minha pesquisa, tenho procurado diferentes fontes: documentos, livros, dissertações, teses, artigos... Em um dado momento, porém, senti falta de uma experiência mais humana da cidade, que não se propusesse a ser neutra ou científica. E isso acabou me levando a Erico Verissimo...

Ainda em Pelotas, em fins de 2010, encontrei no Sebo Icária (na Dom Pedro II 838, pertinho da praça Cel. Pedro Osório, no centro... vale a viagem) alguns volumes por um preço razoável. Comprei "O continente" 1 e 2, "Incidente em Antares" e uma edição em dois tomos de "Solo de clarineta", que por ser um livro de memórias do escritor foi o primeiro que decidi ler. Sem tomar o livro como uma verdade absoluta, mas considerando-o exatamente o que é - um livro de memórias - queria tentar compreender como Erico lembrava de sua vida no período em que aqui viveu. Por quais ruas andou, que personagens conheceu, de que atividades sociais participou... Fui imediatamente absorvido pelo livro, pelo estilo, pela narrativa. Por mais de uma vez me percebi sorrindo e concordando com diversas opiniões e reflexões do romancista. Em determinado trecho do livro, ao falar sobre a ideia de produzir seu romance histórico "O tempo e o vento", Erico escreveu que


Para o menino e para o adolescente – ambos de certo modo sempre presentes no inconsciente do adulto –, o poético, o pitoresco e o novelesco eram atributos que raramente ou nunca se encontravam em pessoas, paisagens e coisas do âmbito nacional e muito menos do regional e ainda menos do municipal. Nossos livros escolares – feios, mal impressos em papel amarelado e áspero – nunca nos fizeram amar ou admirar o Rio Grande e sua gente. Redigidos em estilo pobre e incolor de relatório municipal, eles nos apresentavam a História do nosso Estado como uma sucessão aborrecível de nomes de heróis e batalhas entre tropas brasileiras e castelhanas. (Ganhávamos todas). Nossos pró-homens pouco mais eram que nomes inexpressivos, debaixo de clichês apagados, em geral de retícula grossa: sisudos generais, quase sempre de longas costeletas, metidos em uniformes cheios de alamares e condecorações; estadistas de cara severa especados em colarinhos altos e engomados. [...] Concluí então que a verdade sobre o passado do Rio Grande devia ser mais viva e bela que a sua mitologia. E quanto mais examinava a nossa História, mais convencido ficava da necessidade de desmitifica-la.
Ler este trecho foi uma boa surpresa. O que Veríssimo escreveu relaciona-se diretamente com nossos objetivos de demonstrar que outras dimensões da história podem ser estudadas a partir dos vestígios arqueológicos. A ficção sem dúvida trata de pessoas muito mais reais que os generais, coronéis, políticos e estancieiros que por vezes a história parece tratar, uma vez que ela é escrita muitas vezes com base exclusivamente em documentos oficiais, administrativos, judiciais, cartoriais. Desse modo, fui buscar no solo de clarineta de Erico as memórias registradas por este conterrâneo que vivenciou por um período de sua vida a paisagem urbana e social da Cruz Alta durante parte do século XX. Um registro de modo algum mais neutro ou verdadeiro que o de um historiador, mas muito mais pessoal, mais espontâneo, mais vivo... Uma visão posicionada, é claro! Erico olhou Cruz Alta de sua própria posição social e a partir de suas idiossincrasias individuais. Se tivesse hoje em mãos as memórias de um peão de estância, de um neto de escravos, de uma lavradora que viveu da extração da erva-mate ou de um comerciante, teria representações diferentes da cidade e de suas pessoas. (E como seria bom se estas memórias hipotéticas realmente existissem...).

Ao falar de sua vida familiar, das andanças com os amigos, dos personagens que frequentavam seu meio social, Erico fala de uma Cruz Alta que raramente aparece nos livros de história, e realmente colabora na desmitificação dessa história no momento em que fala de pessoas comuns, vivendo suas vidas cotidianas. Vidas mais parecidas com as nossas (com a minha, pelo menos). O escritor descreve personagens cujos nomes não ficaram imortalizados nas placas das esquinas ou nas fachadas das escolas; fala de práticas sociais que se davam em outros planos que não os movimentos revolucionários e decisões políticas - embora obviamente ligadas a estes. E mais importante, ao menos para os meus objetivos, fala sobre como foi viver na Cruz Alta de outros tempos.
Apenas para ficar em um exemplo, em dado momento Erico fala sobre a cidade.


Como era Cruz Alta em 1926? Ora, era uma cidade sem rios nem lagoas, plantada em cima dum coxilhão, a quase quinhentos metros acima do nível do mar e dotada de bons ares. Podia-se dizer que seu eixo era a Rua do Comércio, que começava na frente da estação ferroviária e, indo de praça a praça, chegava até umas ruelas baixas e esbarrondadas, onde terminava. De lá avistavam-se as suaves coxilhas em derredor, com seus capões azulados e suas estradas e barrancos, que mais pareciam talhos – ora dum vermelho de sangue de boi, ora dum amarelo-alaranjado – abertos naquelas terras vestidas dum verde vivo e lírico. Umas três ou quatro ruas paralelas ou transversais à do Comércio tinham certa importância. Na sua maioria não estavam pavimentadas de paralelepípedos, de sorte que quando sopravam ventos erguia-se do solo [...] uma poeira avermelhada que deixava, muros casas e caras um tanto encardidos.
Comparar é inevitável. Muita coisa é diferente na Cruz Alta de 2011. Por outro lado... a Rua Pinheiro Machado não é ainda a rua do comércio? Não é ainda hoje o centro comercial da cidade? (E o final  - ou começo, se considerarmos a atual numeração da Pinheiro Machado - ainda não é uma "ruela baixa e esbarrondada"? Aqueles que como eu moram ou passam por este trecho sabem do que estou falando). Talvez seu antigo nome fizesse mais sentido. Em um determinado momento, porém, foi decidido que um  ilustre cidadão merecia uma homenagem, e desde então a rua é de Pinheiro Machado, que desafortunadamente não circula mais por lá.

Mas voltemos à Erico Veríssimo. O fato é que a experiência de ler "Solo de clarineta" não poderia ter sido melhor. Fui completamente envolvido pelo livro. Inicialmente tencionava ler apenas o período referente à vida de Erico em Cruz Alta, mas sua narrativa me enredou de tal maneira que avancei até suas memórias de Porto Alegre, da vida nos Estados Unidos... Ao terminar este livro, de imediato emendei a leitura de "O continente", parte de uma das grandes obras da literatura brasileira, "O tempo e o vento". Trata-se inegavelmente de um livro de história do Rio Grande do Sul, melhor que muitas obras historiográficas que se propõem a tratar do tema. Veríssimo destaca também a famosa belicosidade do gaúcho, mas aqui a vemos não pelos olhos dos famosos generais, mas pela visão das mulheres que esperavam aflitas por seus maridos e  filhos, e por estes mesmos, muitas vezes recrutados a força para combater em guerras das quais não sabiam muito bem os motivos. Erico sem dúvida sabia construir personagens densos e interessantes. Na miríade de figuras que o escritor apresenta, tive especial afeição pelo Dr. Carl Winter, médico alemão que se instalou em Santa Fé, e por Fandango, capataz da estância do Angico. O primeiro cativa pelo olhar estrangeiro com o qual acompanha e analisa as comédias e tragédias de Santa Fé; o segundo por sua sabedoria  popular, seus causos e ditos, talvez mais verdadeiros que muitos axiomas da ciência. Ambos foram professores, cada um a sua maneira, do jovem Licurgo Cambará, personagem fundamental no segmento d'O sobrado.

Não tenho a pretensão nem a competência necessária para analisar em detalhes a obra de Erico Veríssimo. Apresento aqui a opinião de um leitor que, por pura ignorância, só recentemente dedicou-se a conhecer em maior profundidade o trabalho do romancista.

A experiência de ler Veríssimo esclareceu para mim o motivo de tamanha - e merecida - reverência ao escritor. Reconheço agora o talento e a relevância deste conterrâneo. Todavia, não sejamos ingênuos! Nossos "heróis" são escolhidos e com Erico Veríssimo não foi diferente. Algumas cidades escolhem ser a terra do milho, ou a terra do Papai Noel, ou a capital das missões. Poderíamos ser a terra de Firmino de Paula, a terra de Pinheiro Machado, a terra de Zé da Silva (já fomos a "cidade dos buracos", devido à fama de nossos asfaltos tempos atrás...). Em algum momento, escolheu-se que esta seria a terra de Erico Veríssimo, e isso obviamente se refere a um tipo de imagem que a cidade quer representar de si mesma; à possibilidade de atrair turistas não só ao museu, mas ao nosso comércio, etc... Associar a imagem da cidade a um de seus mais conhecidos cidadãos, escritor de fama internacional, traz benefícios econômicos, sociais, políticos... 

Interesses diversos permeiam a representação de passado que uma cidade faz e, como dizem, "são os vencedores que escrevem a história". Aqueles cujos nomes são dados à praças, ruas ou escolas são escolhidos por algum motivo. Não são representantes naturais de nosso passado; foram colocados nesta posição. Posso não saber quem foram Pinheiro Machado, Venâncio Aires, Margarida Pardelhas, Annes Dias, General Osório e tantos outros nomes que vejo pelas ruas de Cruz Alta, mas o fato de ter que conhecer estes nomes para me localizar espacialmente garante que eles permaneçam entre nós, que sejam lembrados. E desse modo, parecem ser os únicos personagens importantes de história cruzaltense, quando não são. Não me entendam mal, não estou advogando a negação ou o esquecimento destes personagens. Tiveram certamente papel importante na história da cidade e merecem ser estudados e lembrados. Contudo, um pouco de senso crítico não faz mal a ninguém. Por que apenas eles? Militares de alta patente podem ter pensado as estratégias de combate, mas foram quase sempre os peões, lavradores e escravos que mataram e morreram nas guerras. As decisões políticas ditaram os rumos da economia e da sociedade, mas foi no cotidiano, no ordinário, na prática social, que estes rumos adquiriram forma e substância. Uma famosa professora só pode assim ser reconhecida por ter tido papel importante da vida de seus alunos. Ninguém faz nada sozinho.

O passado passou (óbvio!), e não tem existência concreta. Tudo que temos são documentos, objetos, fotos... vestígios, ou seja, fragmentos do passado que sobrevivem no presente. Historiadores e arqueólogos utilizam-se destas fontes, selecionam, organizam, esquematizam, e por um exercício intelectual preenchem as lacunas. E neste sentido, a história não é descoberta. É criada.

Contudo, se Cruz Alta tem que ser a terra de alguém, Erico Veríssimo é, afinal, uma boa escolha...

REFERÊNCIAS
CHAVES, Flávio Loureiro. História e literatura. Porto Alegre: Ed. Universidade-UFRGS, 1999.
VERÍSSIMO, Erico. O tempo e o vento - O continente I. São Paulo: Globo, 2000.
VERÍSSIMO, Erico. O tempo e o vento - O continente II. São Paulo: Globo, 2000.
VERÍSSIMO, Erico. Solo de clarineta I. Porto Alegre: Editora Globo, 1980. 

2 comentários:

  1. Conseguiste com tuas palavras justificar o porque d'eu estar lendo Erico somente agora com outros olhos e por prazer e não obrigação estudantil, Ele com certeza merece nosso respeito pela pessoa que foi, e desta tenho marrativas fantásticas, Parabéns pelos posts aos dois. Bjo Ju.

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  2. Verdade, Juliana.
    Agora estou lendo Incidente em Antares. Muito bom também...

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